Libertação

Libertação

O bicho é escravo do instante
de sua fome de seu desejo
é preso à eternidade do momento .
O bicho é imortal porque não sabe que morre .
O homem é escravo da eternidade.
Porque sabe que morre e morre seu tempo .
Pesa o momento para além do tempo . Balança o passado , projeta o amanhã .
Planeja o jantar , o filho
a tática da conquista do primeiro beijo
o emprego o futuro glorioso
prevê a morte com crédito
para funerária
constrói a eternidade
para além de seu tempo
em cada cálculo de boa ação .
O tempo não se pensa
carcereiro suave de homens e bichos .
Nos passa e nos atravessa .
Na prisão provisória do tempo
o homem constrói sua liberdade:
constrói livre a prisão voluntária
a quem decide amar
se prende ao amigo ao filho à ideia
à carne
de quem decide se juntar .
Na prisão provisória do corpo
decide não desejar o que o destrói :
a rejeição a mágoa o ressentimento
que bate na parede
do desvio do olhar do outro
onde mora a cela da indiferença .
Livre , o homem busca no abraço
se prender a um outro corpo
mesmo que abrace o vazio
de sua doação.
Livre do tempo como um bicho
mas mais que um bicho
o homem se livra do desejo
que o aprisiona
abraçando a indiferença de quem ama
abraçando a ausência de quem ama
abraçando a ação de amar
assim atravessando a distância do tempo .

A vida se devora

A vida se devora
o tempo se come
nos desperdícios da hora
no erro póstumo
do incalculável agora
A vida se devora
no amor
que morre e se renova
num outro desejo que se implora .
Um bicho come o outro
para sobreviver
e esquecer a morte de quem devora
O bicho vive na eterna permanência
da angústia do agora.
O bicho humano se canibaliza
na confusão da hora :
sua vida se alimenta de vida:
Você se doa comendo teu eu
e a sombra da indiferença
de um outro
come a tua aurora .
O seu amor se alimenta e se devora
no desejo que se reproduz
na vontade da eternização do agora.
Agora e sempre a vida implora
a cegueira das mãos que esculpem
o sentido de viver
a vontade de permanecer
que seus olhos e mãos devora .

Entre o inferno e o paraíso

Entre o inferno e o paraíso

O recém nascido sonha com sua fome .
Toca sua felicidade
na sua simples vontade .
O limbo é não reconhecer a felicidade
de uma confusa verdade
do adulto que confunde sua vontade.
O limbo é um tédio fácil de lidar –
como um sono sem sonhos
embalado no ar .
O inferno é a felicidade por perto :
a vontade reconhecida no deserto
no oásis ao alcance da mão
à distância rejeitada de um toque
como um beijo suspenso no ar
na boca próxima que sorri do seu não.
O paraíso é o doce purgatório reconhecido
de saber que toda felicidade
varia de beijos suspensos na imaginação
sempre à espera de uma esperança
por outra boca a se negar ou doar .
O paraíso é a boca da espera
do sempre recém nascido
sonhando devorar outra esperança
como um oásis sempre a se entregar

Tempo e momento

Tempo e momento

Em um momento o tempo é uma sombra vista atada aos pés
: não o alcanço , não o toco
ele me ultrapassa e me escapa
quando me arrasta no gesto que se perdeu
ou se enterra na ação errada
que se deu
que se crava para sempre
na história do momento
que morreu .
Outra hora o tempo se congela no momento
no primeiro sorriso do filho
no primeiro beijo em quem se ama
ou no adeus do último beijo em quem se ama :
o momento então se eterniza
e para sempre
se revela.
Um momento assassinado se ressuscita
no perdão da boa ação que o embala :
um traidor que busca perdão
é o tempo redimido
é um momento redefinido .
O tempo é sempre um momento :
um instante um dia um ano um século
nada são para a infinita história do tempo
que concebeu o universo que funde
matéria lugar e o próprio tempo
num único e eterno
momento .
Nada somos diante do tempo
mas quem conta e concebe o tempo
somos nós que criamos nosso tempo
reproduzindo o nosso tempo no desejo
de um tempo melhor ao filho que geramos
ao amor que criamos ao lugar onde estamos
no amor que geramos na pessoas
onde moramos .
O tempo sem nós é um lugar vazio :
Nós somos o lugar onde habita o tempo
nós somos o breve momento eterno da ação
que preenche e transforma o tempo .

Fidelidade

A paixão te faz fiel de fato.
A paixão elimina o desejo
por tudo que não seja o objeto
da tua paixão .
Te faz fiel
mesmo a uma falha de comunicação
mesmo a quem não te ama
mesmo a um nada de relação
que é tudo para você
A paixão é prisão voluntária da fidelidade.
A paixão pode ser prisão inventada
Calculada como sintoma de carência
Idealizada como um tapa buraco
em ideal da sombra do que se vê de alguém.
Mas é sintoma de paixão aprisionada
do mesmo jeito .
Mas o que de fato
pouco vemos de nós mesmos
é a sombra que sobra de nossa projeção
do que buscamos em outra pessoa
que nos aprisiona livremente
a nos prender
em quem inventamos amar .

Sem acaso

Não existe acaso.
Tampouco existe destino .
A vida na terra teve uma chance
em um trilhão no universo que observa
sem vida ser observado pelo tempo escasso
de uma pessoa que observa
em seu mínimo tempo a vida
que se cria e se consome ao infinito .
Um folha que cai no teu ombro
Alguém que esbarra no teu ombro
forjam a história dos teus momentos .
Um breve momento jamais desacontece:
Permanece tatuado no infinito de uma vida .
Cabe a você segurar a folha ou alguém
Cabe a você segurar o momento
Tocar segurar aprender a amar e tocar-
infinitamente na tua vida breve
uma folha caída uma pessoa caída
no seu tempo
e produzir a tua história particular do universo.

Do que não é mau nem bom

Não é mau bem bom o desejo
que não se abre a você .
Não é mau nem bom
o olhar que se desvia do teu –
a boca que colhe o beijo
de outro que não a mereceu .
Não é bom nem mau o talento
que não te toca
o filho que não veio
o amigo que se foi
a razão que se perdeu .
A pior tragédia
é não ter culpados a se achar .
uma morte por um terremoto
não tem a quem se culpar –
uma morte por doença
não tem quem se culpar .
A senilidade em vida –
por ressentimento ou velhice –
não tem razão a se escorar .
Uma criança inocente com câncer
não vê remédio ou justiça divina
a lhe olhar .
Uma morte por tortura
tem a quem se achar
a se pisar .
Crueldade do destino
é não ter a ninguém
pra se vingar .
Não é má nem boa
a indiferença do destino
que não lhe dá justiça
a se agarrar .
A pior tragédia
é não ter culpado
a se festejar .

O meio termo

O meio termo.
Aquele espaço de dúvida
entre a paixão e o afeto brando
o interesse e o futuro esquecimento
e abandono de alguém que poderia significar tudo .
Aquela dúvida saudável
de toda ideologia seita
de toda certeza fanática que empurra
a um sistema de sentido e cega as sutilezas que salvam ou perdem uma vida .
O meio termo calculado
que impede uma ação de salvação
– de um país de uma amizade de um sucesso de um amor .
O meio termo morno cuspido pelo Deus
criado por homens de fé .
O meio termo morno
que salva do fogo do fanatismo .
O meio termo que trava
toda crença fé ou invenção amorosa que justifica uma vida.
O meio termo que concilia adversários
O meio termo que absolve assassinos
A obsessão que salva de uma saúde tediosa
que joga um sentido de vida
numa água em fogo brando
como um sapo inconsciente
de sua morte lenta e torturante .
O meio termo que salva
do incêndio desnecessário
de uma paixão sem sentido
O meio termo que queima
toda criação de um sentido

Não chorei em teu enterro

Não chorei em teu enterro.

Talvez as lágrimas evaporassem
antes de brotar por eu não ter aprendido
a te amar devidamente:
amar a lógica das diferenças
para além da superfície do que nos unia;
amar o que eu insistia em matar em você
que era precisamente o que me fazia viver;
amar o que eu matava em mim para poder sobreviver
a nosso erros que plantei em você.
Não choro por tua ausência porque tua presença inacabada
está sempre por se refazer em mim,
ainda grita em mim
como a busca de uma palavra não proferida
de um carinho esboçado e não perpetrado
como a esperança desesperada
de um gesto adiado
e em algum lugar esperado.
Não chorei em teu enterro
porque teu cadáver ressuscita em mim
como um corpo
que eu abraço
em nossas vidas sempre inacabadas.
As lágrimas que não vieram
salgam a terra em que se afundou
a última despedida que não veio.
Não chorei no teu enterro
Não me despeço de você
porque eu ainda não mereço
chorar lágrimas que lavariam
a mágoa que atravessa nosso chão.
Não chorei no teu enterro
Não me despeço de você
porque não há despedida
para uma morte
para sempre
jamais concluída. ( Adrilles jorge )

Estranheza

Soa estranha a negativa
de quem rejeita
tua estranheza .
Soa estranha a estranheza
da alguém que não
te enxerga no reflexo
da sua própria estranheza
que você não reconhece .
Soa estranho
alguém estranho
aparentemente tão próximo
querer mudar
tua natureza .
Soa estranho e triste
multidões de estranhos
aparentemente tão próximos
condenarem tua natureza .
É a um só tempo misericordiosa
e cruel a estranha natureza
de todos nós desatados .
Anda – se só
em busca de uma normalidade
escondida na forma de uma gentileza
de alguma sombra estranha
que atravesse toda estranheza
não mutuamente reconhecida .