2004-11-30 21:30:00

       
  

A psicanálise no divã

A definição de psicanálise em termos
populares é muito simples:é o método da candinha aplicado com
sofisticação e adorno intelectual.E pago, claro.A análise consiste
fundamentalmente na cura pela fala, no reconhecimento verbal das
próprias limitações e problemas;uma espécie de fofoca sofisticada ao
contrário, em que o objeto das minudências indiscretas é o próprio
analisado.

O problema é saber exatamente o que esta ‘’cura ‘’ em
questão significa.A grosso modo,uma terapia não resolve problemas
concretos, mas o ajuda a se adaptar a eles.Exemplo:alguém com limitações
físicas, um maneta, não recuperará a mão através da terapia, mas
trabalhará seu ego através da sublimação da falta que a mão lhe faz,
investindo no seu ego.Mas ainda assim, a mão não volta.O problema
concreto persiste.Ou seja, a psicanálise o ajuda  a se adaptar aos
seus problemas,mas não o livra deles. Por isto a minha desconfiança
e uma certa descrença na terapia.Cá pra mim, sei que milagres não
existem, mas prefiro acreditar neles que me adaptar às minhas limitações
e problemas.Um paradoxo idiota, eu sei, mas metafisicamente
reconfortante.

Tanto é assim, que a única vez que procurei uma
analista, busquei uma que fosse Junguiana, justamente pelo lado meio
‘’místico’’ de Jung, que foge um pouco do rigoroso e cético
cientificismo Freudiano.Minhas primeiras palavras à ela foram
justamentes as penúltimas do final do último parágrafo:’’preciso de um
milagre.Não quero me adaptar aos meus problemas; sei quais são e são
praticamente insolúveis.O que você tem a me oferecer?’’.A senhora em
questão polidamente sugeriu a hipótese de jogar as cartas para
mim.Tarô.Dei meia volta e abandonei minha primeira e última sessão de
análise.Gosto de acreditar em milagres, mas não a este ponto.Prefiro me
enganar de maneiras mais sutis.

Oh, por favor, nada contra Freud, que considero o
maior pensador do século xx, o último grande divisor de águas da
história do pensamento.Nosso querido Sigmund abriu as portas para um
mundo novo na história da psicologia, descobrindo o subconsciente
humano,e que ninguém é tão normal quanto aparenta, nem tão louco como se
imagina.Tudo, claro, é uma questão de convenções socias, que delimitam o
que é ou não é ‘’saudável’’ do ponto de vista de comportamento.

Até aí tudo bem.Freud demonstrou perfeitamente este estado de
coisas.Mas sou cético em relação a seus métodos de ‘’cura’’, como já
disse.Sou megalômano social, no fundo um romântico pateta, que acredita
que a sociedade pode mudar, em vez de me adaptar aos padrões sociais de
comportamento.Estou sendo simplista e limitador, eu sei, mas isto é
decorrência de outra desconfiança minha em relação à Feud e à
psicanálise.Explico:a psicologia nos leva a crer que todo ser humano é
um vasto e infinito mundo em si.Acho que isto é supervalorizar a
humanidade.Somos mais elementares e parecidos do que pensamos ser.Todos
desejamos mais ou menos as mesmas coisas, com maiores ou menores
gradações e sutilezas:dinheiro, amor, fama, sexo, etc, etc.Esta
‘’superestimação’’ do ser humano pela psicologia levou a encobrir certas
atitudes e defeitos de caráter de muita gente que posa de ‘’maluco’’,
quando na verdade é sem vergonha mesmo.Em suma, Freud era um gênio.Mas
encheu demais a bola do ser humano.De tanto falar em ego, transformou a
geração de um século inteiro em egocêntricos.Mais uma prova de que o
método de cura da ‘’falação’’ às vezes não só não resolve problemas
concretos, como às vezes ainda cria neuroses a mais.Ainda mais grave
quando se pensa que , no caso, era a humanidade inteira é que estava no
divã.

  

2004-11-27 11:15:00

       
  

Projeto

Não se abster da utópica antevisão de paraísos irreais
Não se abster da irrealidade incorpórea dos  devaneios
Que me sustentam.

Perseguir o sonho
equidistante entre a premissa e o concreto
tornar-se rigorosamente sublime nas atitudes ridículas
erguer a pluma com o esforço de quem carrega um mundo
(e vice-versa).

projetar a vida como quem traça linha curva,
única distância possível entre dois pontos.
esquivar-se das certezas póstumas
aproximar-se da dúvida concreta
penetrar o vazio como em coito ininterrupto
derrotar-se prazeirosamente pelo acaso
ser levado pelas promessas de infidelidade
 
ser massacrado como quem dorme
ser vencido como quem flana
amar como quem perde
viver como quem rouba
dançar como quem morre
desejar como se tortura
perder sutilmente o eixo
para nunca mais achá-lo
às margens de si mesmo

conspurcar-se na pureza hedionda dos sonhos estéreis
tornar-se vítima da própria esquálida grandiloquencia
jogar dados com a sorte carcomida  vencida e morta.
Morrer continuamente como quem ressuscita sempre

desdenhar o fruto proibido
Por ter-se tornado lícito demais

tornar-se Deus
e desdenhar Sua criação

rir.

  

2004-11-23 21:58:00

       
  

The big grandmother

Existe uma nova inquisição pairando
no ar.Ela age na surdina, quietinha, suave como bossa nova, e
mais:aparenta ser bem intencionada.É a indústria do politicamente
correto.Os novos inquisidores aprenderam que na base da porrada não
subjugam ninguém e ainda criam movimentos rebeldes.A nova inquisição tem
cara de bonachona, como uma avó conservadora que vigia todos os passos
dos netinhos para que sigam à risca um manual de bom comportamento.Uma
espécie de ‘’big grandmother’’, uma grande vó ortodoxa agindo na
sociedade com um suave jugo para as ovelhas desgarradas.

Para o politicamente correto, tudo é nuança.Preto não
pode ser chamado de preto, nem aleijado de aleijado.Terminologia direta
é ofensa.Então se procuram eufemismos, semi-tons para raças e defeitos
físicos.Pretos são ‘’afro- alguma coisa’’, gordos são ‘’fortes’’, débeis
mentais sofrem de ‘’disfunção cognitiva’’.É uma revolução que anula
todas as aparentes ofensas(chamar preto de preto é ofensa?) através de
uma nova terminologia.Uma nova civilização que se traduz como um
eufemismo daquilo que é, ou seja, uma suavização do que está na nossa
frente(?).

Mas o politicamente correto não age apenas no campo
verbal.Ele faz uma reeestruturação do comportamento humano.É proibido,
segundo suas bases, não ler qualquer livro até o fim, bem como é pecado
mortal julgar qualquer obra sem terminá-la.É proibido ofender algo ou
alguém sem que se esteja plenamente certo da mediocridade ou
desonestidade do dito cujo.Para o politicamente correto, Paulo Maluf é
um político ético e Paulo Coelho, um bom escritor, até que se prove o
contrário.A dedução, o instinto, a intuição mais óbvia são
terminantemente proibidos segundo os pressupostos politicamente
corretos, e quem desobedecer as regras, queimará na fogueira do opróbrio
dos julgamentos precipitados e injustos.

Esta nova sociedade que emerge garante liberdades
fundamentais que nunca sonharam ser conquistadas:o medíocre tem direito
de ser medíocre, o aleijado tem direito de ser aleijado, e o
negro(pasmem!) tem direito de ser negro, mas não nestes termos
verbais.Não é mesmo uma revolução?

Poderia se perguntar qual o sentido desta nova
inquisição:diminuir os preconceitos?Ah sim, porque a palavra
fundamental, o índex paradoxalmente usado ad nauseum pelos politicamente
corretos é ‘’preconceito’’.Como tudo é eufemizado neste universo
particular, então os conceitos deixam de existir, claro.Tudo torna-se
manifestação subjetiva e precipitada. Tudo é pressuposto, um idiota não é
idiota e um cego não é cego, até que se prove o contrário.Como já
disse, tudo vira nuança, posto que conceitos absolutos se tornam ofensas
gravíssimas.Afinal de contas, dizer que um surdo-mudo é mudo é um
desaforo, não?

A revolução do politicamente correto é a revolução da perda de
identidade.Como todos os conceitos absolutos se transformam
em ‘’pré-conceitos’’, todos se ofendem por serem chamados do que
são.Todos perdem suas definições elementares e se tranformam numa
gigantesca, plácida e feliz massa amorfa, em que ninguém sabe o que é e
ninguém define o que vê.Uma pedra seria uma pedra, uma mulher seria uma
mulher?Não, claro que não, todas estas >
  

2004-11-20 13:53:00

       
  

Sexo

Freud estava enganado ao dizer que só os que tinham
vida sexual é que eram saudáveis.Por uma razão simples:não existe sexo
saudável.Sexo é patológico, sujo e esquisito.Mas vital, naturalmente.A
pior tara é a abstinência sexual.As outras são em maior ou menor medida,
lícitas, desde que consentidas entre os praticantes.

Sexo é a esculhambação do amor.Sim, Sexo com amor é ótimo, mas o
verdadeiro amor é casto.Amor mesmo só o platônico.Sexo é a sujeira
natural que surge da pureza e da beatitude amorosa.Sujeira a que
aspiramos vertiginosamente, aliás.Sexo nos remete à nossa condição
animalesca, tanto mais ou menos obscena seja a prática do dito.Aliás, as
pessoas tendem a confundir sexo realizado com amor com sexo mal feito.É
o chamado sexo com diretrizes de castidade.Sexo que não é obsceno é
sexo pobre.Por isto há que se esculhambar o amor com critério e
competência sim senhores.

Mulheres erram em larga escala atribuindo poesia ao sexo.A verdade
poética está na transcendência.Não é a toa que todo poema erótico é
enfadonho.Sexo não ‘’transcende’’, sexo é puramente físico ,material,
humano, demasiadamente humano.E sua virtude reside justamente neste
ponto:sexo é o prazer mais absoluto do plano estritamente terreno,
baixo.

Falei em sexo como uma virtude, quando todos o definem como vício.E é
mesmo.Um vício virtuoso , uma celebração da vida(a maior de todas).Sexo
é a negação prazeirosa da dimensão divina e a afirmação do humano, do
aqui e agora, da eternização do efêmero.Têm razão os religiosos, em
abominar o sexo por tudo isto.A maior traição à Deus foi quando Adão e
Eva O trocaram por uma bela trepada, ou pelo ‘’fruto proibido’’
como preferem os eufemísticos.Trocaram , gostaram e não se
arrependeram.Tiveram que começar a ganhar o pão com o suor do rosto
e a sofrer as intempéries do destino apenas pelo prazer de
fornicar.Sujeitos a sofrerem até depois da morte, a passarem temporadas
no purgatório e no inferno. E ainda assim, não se arrependeram.Em nenhum
momento.

Os padres têm razão mesmo.Sexo não purifica a
alma.Mas convenhamos.Também não suja nada.Esta coisa de celibato
clerical é a maior das perversões.E bem sabemos que suas motivações são
mais de ordem econômica que de salvação de almas.Pior para os noviços ,
coitados, que abrem mão(em tese, rigorosamente em tese, claro)do maior
prazer humano na idade mais plena e vigorosa para a prática da
coisa.Celibato é o maior dos crimes impostos a um ser humano.É o inferno
em vida.Deus nos livre de tamanho castigo.

Sexo não comenta-se.Faz-se.Este meu palavrório
aborrecido e enfadonho é sintoma de falta de sexo.Ao desmentir
Freud , talvez tenha sido injusto.Seu conceito de saúde talvez não
estivesse relacionado a uma espécie de calmaria plácida e
beatífica.Talvez saúde mesmo seja o reconhecimento de nossa patologia
infinita.E doença maior que falta de sexo não há.É a qual padeço
dolorosamente nos últimos tempos.Por isto este texto indecente.

 

Ah, mas mais enfadonho e doentio que escrever sobre sexo é ler sobre sexo…

  

2004-11-17 08:09:00

       
  

Feliz aniversário

Envelhecer é uma indignidade.É sentir lenta e
inexoravelmente a deterioração do corpo e de outros elementos afins e
superestimados:mente, alma e subgêneros.Uma decadência perpétua e
permanente.Não, não se aprende quase nada com a experiência, a não ser
suportar um pouquinho melhor o sofrimento, a mágoa e traiçõezinhas com
maior ou menor importância.Envelhecendo, apodrecemos.Literalmente, sem
nenhuma intenção de metáfora.Basta sentir.

A tão propalada aquisição de sabedoria que o tempo nos dá não passa
de conhecimento póstumo da tragicomédia humana.Sabedoria é um sinal
trocado:é subverter o significado da consciência do eterno ridículo em
sublime.Como um francês que mascara dois ou três banhos atrasados com um
suave perfume ou roupa preta para adelgaçar a silhueta de um obeso.

Não sei muito mais coisas hoje do que há dez
anos.Esta minha ignorância latente é adornada com alguma informação a
mais, claro, que confirma alguns pressupostos já intuídos e remastigados
que , ao final das contas, não acrescentaram ou mudaram alguma coisa em
minha vida.Assim com todos nós:percebemos a decadência inexorável
quando descobrimos que a soma dos nossos conhecimentos não nos levou a
nenhum outro ponto que não fosse o de partida.Viver é caminhar em
círculo, por mais que tentemos andar para a frente.Ah, sim, esta é uma
observação que o tempo nos dá.Compensador, não?

Envelhecer é perder paulatinamente a inocência, que
por sua vez não passa de egocentrismo infantil travestido com nome
politicamente correto.Em outras palavras, perder esta ‘’inocência’’ é
despir-se , a contragosto, do nosso narcismo elementar.É descobrir que o
outro existe, e que este outro geralmente nos ganha todas, ainda que
não mereça a vitória na maioria das vezes.Envelhecer é tomar consciência
pouco a pouco, empiricamente, do conceito de injustiça, que , no mais
das vezes,significa narcisismo contrariado.

Não existe a serenidade da terceira idade.Existe o
desencanto, a frustração consumada e arraigada.Neste sentido,envelhecer é
tornar-se zen-budista por falta de opção.Mas minto.Existe a opção da
rebeldia, que muitos teimam em >

Não delimito uma terceira idade.Começamos a
envelhecer no sentido ‘’metafísico’’ da coisa com nosso primeiro
desencanto, nossa primeira decepção, por mais simplória que seja,
quando somos desmamados na mais tenra infância, por exemplo.Mas
sublimamos logo uma primeira rejeição e durante o correr do tempo,
aprendemos formas mais sofisticadas e sutis de sublimação a outras
rejeições.Talvez esta seja a lição mais emblemática do que é envelhecer:
aprendermos como nos desviar de nossas rejeições.Em todos os níveis.Em
todos os sentidos.

Feliz aniversário, Adrilles.

  

2004-11-12 03:35:00

       
  

Questões aparentemente estapafúrdias.Apenas aparentemente.

Não sei se é síndrome de Clarice
lispector, mas dia destes fui acometido de certos devaneios metafísicos
quando estava prestes a matar uma barata.

Esqueçam o lado aparentemente estapafúrdio da coisa e
pensem bem:por que damos tanto valor à vida humana e desprezamos outras
formas de vida?Não seria pretensão dizer que por sermos uma forma mais
elaborada de vida, temos a hegemonia sobre os outros seres?Não estaria
embutido em nós um certo egocentrismo de raça?A resposta à última
questão evidentemente é afirmativa e , apesar dos questionamentos
filosóficos , não hesitei em esmagar o inseto asqueroso.

Nós , humanos,não hesitamos em nos impor
afirmativamente como senhores do universo, sem culpa nenhuma.Os valores
de respeito à vida ,claro, se ciscunscrevem à vida humana. Não deixa de
ser um tipo de racismo elementar, mas tolerado e entendido por todos
como absolutamente normal. A dor imposta só causa mágoa ou
arrependimento quando infligida à um semelhante.Quer dizer, às vezes,
nem isto.

Até aí tudo bem.Mas precebe-se que as bases do
racismo e do egocentrismo humano têm suas raízes neste ponto.Até que
ponto as semelhanças se limitam a humanos e não humanos?Somos
diferentes uns dos outros.Se é justo estabelecer um escalonamento de
valores de vidas, então porque não seria igualmente legítimo escalonar
as própria vidas humanas em termos de raça, credo, inteligência, etc?Por
esta lógica ”peculiar”, um cão teria mais valor que uma barata, e um
intelectual mais valor que um operário braçal, por exemplo.

Arbitrário?Ora, se arbitrariamente damos mais valor à
um cachorro que a uma barata, por que não seria lógico supor que alguém
com dotes intelectuais não seria também superior a alguém desprovido
destes mesmos dotes?O exemplo estapafúrdio é aleatório, mas é uma
pequena amostra de que um sistema sócio político como o nazismo pode
surgir de conclusões aparentemente banais como esta.

A verdade um tanto indigesta é que vivemos com um
certo instinto homicida permanente, nem que seja pelo prazer da morte de
uma barata.A competição é um elemento básico da natureza, e competição
pressupõe vitória e derrota, que são eufemismos para sobrevivência e
morte.Darwin estava com a razão:o mais forte sempre sobrevive. O sentido
de ‘’força’’ aqui á empregado como poder, e este poder pode variar
deste o poder físico que temos sobre uma simples barata, passando pelo
poder do conhecimento de um ser humano sobre outro, até o poderio
econômico que alguns povos exercem sobre outros.

A questão se limita estritamente a isto:a sobrevida
de uns, que detêm o poder, sobre a derrota, a morte de outros.Esta é uma
das bases rudimentares que sustentam todas as formas de vida.Mas estão
aí Cristo, kant e inúmeros outros que tentaram reverter esta natureza
agressiva e competitiva do ser humano.A culpa, neste sentido, tem sim,
um freio limitador a esta competição desbragada em que nos metemos
consciente ou inconscientemente.Sim,sermos um forma superior de vida nos
traz certos dissabores como aquilo a que chamamos consciência, que pode
ser melhor aproveitada, para que talvez um dia possamos melhor tratar
baratas, cães e seres humanos.

  

2004-11-08 13:32:00

       
  

A cultura do coitadinho

No Brasil , talento nunca foi
quesito imprescindível para acesso à fama e ao reconhecimento.A
celebridade do tipo ‘’big brother’’ é um fenômeno muito mais antigo
e arraigado que o próprio programa infame.Mas há um fenômeno
particularmente afeito aos costumes da terrinha:a apologia do
coitadinho, do humilhado, que inexoravelmente se converte em herói
nacional. E notem bem, o fenômeno não se limita às celebridades
vazias.Muita gente de peso e de talento pega carona neste viés.

O exemplo mais recente é o do escritor Carlos Heitor
Cony.Um dos mais renomados e talentosos homens de letras do país,
Cony adora proclamar a sua paixão pelo que ele chama de ‘’homem
derrotado’’, e que o sucesso e a vitória não lhe interessam .Claro que
ele não deve se interessar muito pela própria vida, uma vez que ele é um
dos mais célebres, bem sucedidos e respeitados escritores do país.Cony
diz peremptoriamente que é um homem infeliz.Recentemente, o escritor
abocanhou uma pensão de mais de vinte mil reais, por ter sido
julgado como ‘’vítima da ditadura’’. Cony nunca foi torturado, sempre
trabalhou em respeitados órgãos de imprensa do país e sempre disse o que
queria dizer em toda a sua carreira.Mas se julga um coitadinho.Este é
seu maior orgulho:o de ser um homem bem sucedido , mas infeliz.Um pobre
coitado, enfim.

O exemplo de Cony é representativo , mas abundam
outros.Reparem como , por exemplo, todo morto célebre se converte
instataneamente em santo.Não importa o passado da figura, mas a morte, a
derrota final, lhe dá todas as bênçãos e perdões que ele tem direito.No
Brasil, morto é herói vitalício.Desde Luis Eduardo Magalhães até os
mamonas assassinas.Os mortos são sagrados ícones tupiniquins.Fico
imaginando o dia da morte do sr. Paulo Maluf, quando proclamarão os seus
nobres serviços à nação e as injustiças a que ele foi sujeito em
vida.Imagino seus parentes, em tom emocionado, bradando a plenos
pulmões, repetindo o patriarca em vida:’’ele nunca teve conta no
exterior!’’

Já os vencedores não têm vez no Brasil. Machado de
Assis, a despeito do seu gênio, é sempre lembrado, com requintado e
discreto prazer sádico, pela sua condição de gago e
epilético(alguns politicamente incorretos não cansam de salientar que
ele era um ‘’mulatinho que veio do morro’’).Não adianta:o sucesso no
Brasil nunca é consumado sem que o sujeito tenha um pé no fracasso.Ou
pelo menos uma paixão pela coisa.Que o diga Walter Salles jr., que a
cada filme seu, parece pedir descupas por ter nascido rico e filho de
banqueiro.Um estrangeiro que vê os filmes de Salles deve pensar que o
Brasil é uma grande favela de bons moços.A vitória não tem vez no
Brasil.Não se perdôa o sucesso aqui na terrinha.

Imagino que esta peculiar situação brasileira se deva
a um certo ranço deturpado do cristianismo no país, a uma certa cultura
do ”crucificado” ,do  derrotado, que é entranhada no
brasileiro.Quanto mais belo o fracasso, mais bela a ”ascese”. Mas isto
não quer dizer que seja uma característica nobre e generosa de um bom
cristão que estende a mão aos perdedores.Ao contrário, é um cristianismo
deturpado, em que a generosidade e a compaixão se transmutam em inveja
do sucesso alheio.É um sinal trocado.Amor se converte em ódio mal
dissimulado.As sutilezas da mesquinharia são muito pouco evidentes.Nada
mais fácil que transformar um vício em uma virtude.Assim é o caso do
medíocre que se faz indignado e furioso com a mediocridade, assim o
ignorante que torce o nariz para o ‘’pedantismo’’ da intelectualidade,
assim o fracassado que esnoba o sucesso alheio.

Claro que no Brasil(e no mundo, aliás) as condições que levam alguém
ao sucesso são mais que torcidas e esculhambadas.A minha ênfase não é o
merecimento ou não do sucesso em si, mas algumas sutilezas do nosso
querido país, que tanto proclama suas boas intenções e generosidade aos
quatro ventos.

  

2004-11-04 15:16:00

       
  

Simplicidade

E Bush venceu as eleições.O mais votado presidente
dos EUA e também o mais votado contra.Com exceção de Nixon, nunca vi um
presidente capaz de suscitar tantas paixões contra e a favor(estas
últimas se circunscrevem ao domínio americano, claro).

A vitória de Bush é a vitória do simples, do prosaico.Curioso
observar que numa época de interrogações como a nossa, vença justamente
um homem pragmático, sem nuanças, sem ambiguidades.Não deixa de ser uma
reação contra o que chamamos de ‘’pós-moderno’’.Não há espaço para
dúvidas no governo Bush.Bate-se primeiro e pergunta-se depois.Todos nós
temos um viés reacionário, o que talvez possa explicar a vitória de
Bush.A busca por soluções imediatas, pelo pragmatismo, pela falta de
questionamento é a resposta para a eleição deste que é o mais simplório
de todos os governantes da história da humanidade.Em uma época de crise,
se aposta no mais elementar, no claro.Lembrem-se que esta mesma busca
de clareza levou ao poder o nazi-fascismo.

Mas Bush não tem o caráter facínora de um Hitler ou
de um Mussolini.Não, o homem emprega métodos de brucutu em nome da
defesa de uma suposta liberdade.Suposta porque o conceito de liberdade
‘’bushiana’’ pressupõe a hegemonia dos EUA como salvaguarda desta mesma
liberdade.É a autocracia de um modo de liberdade imposto aos demais.É a
ditadura da democracia imposta, da liberdade imposta, do capital
imposto.Sim, porque de acordo com os pressupostos americanos de
liberdade, só existe democracia em um sistema capitalista que promove a
liberdade do indivíduo de se expressar e de emergir
financeiramente.Claro que esta liberdade tem ampla margem de sustetação
nos EUA e pequeno alcance nos países periféricos.Em suma, o governo
Bush, que se arrastará por mais quatro anos é uma espécie de ditadura da
liberdade americana imposta.Um contra-senso simples e elementar na
cabeça dos atuais governantes do grande e generoso império.

Não culpo Bush por nada.Ele é um produto de seu
meio:um homem médio, oriundo de um meio prosaico, com valores fixos e
imutáveis;um homem que não conseguiu se sobrepor ao seu meio.Seu
problema é justamente este.Um governante deveria ser uma exceção, alguém
que tivesse uma idéia maior de valores éticos e sociais.Bush não
se destaca em nada.Ele é a representação fidedigna do homem comum do
interior americano.Ele é símbolo de uma visão ortodoxa e simplista das
coisas.

O mundo não precisa de homens comuns, precisa de
exceções.O senso comum é sinônimo de mediocridade, e a mediocridade é a
mãe da barbárie.Não se trata de uma dicotomia entre esquerda e
direita(Bush é um constrangimento para a própria direita), trata-se de
bom senso(não senso comum):as soluções simples têm um alcance limitado,
por uma razão simles:o mundo não é simples.