A inviabilidade da pureza
Vendo Tom Jobim em um especial de dez anos de sua
morte.O humor lúdico, mas bem intencionado, quase pueril, que desperta
simpatia imediata pela absoluta falta de malícia ou segundas intenções.E
descubro:Tom Jobim foi uma utopia.A possibilidade de um Brasil
romântico,edênico, essencialmente bom , quase casto;como uma
projeção imaculada de uma nação que não se converteu nas promessas
de suas boas intenções.Jobim , em sua música e personalidade, era um
nicho de branco em meio a um lamaçal.Não sei quem disse que o Brasil
precisava merecer Tom Jobim e a bossa nova.E é a pura verdade.
Curioso como estes oásis de beatitude(mas sem castidade, claro)
aparecem de vez em quando, quando as coisas estão negras.A obra de
Mozart, por exemplo, é uma celebração da vida que remete a um
estado de transcendência que foge às mesquinharias terrenas,
baixas.Mesmo o sofrimento em Mozart(e também em Jobim) é sempre
representado de uma maneira plácida, como que um caminho de purificação
para algo maior.Mozart sofreu o diabo, enquanto Jobim teve uma vida mais
que agradável.Em Jobim, a obra é fruto direto do seu estado de humor e
vida.Já a música de Mozart é uma espécie de redenção da própria vida, de
fuga prazeirosa de sua realidade.
Não sei se ainda é possivel hoje uma arte que remeta a um estado de
graça como os representados pela obra erudita de Mozart e a
popular de Jobim.Na literatura , nem pensar.Não se faz prosa nem poesia
com bons sentimentos sem cair no ridículo.Já a música permite uma
elevação a um estado de espírito que pode dar em uma calmaria beatífica,
ao mesmo tempo doce e elevada.Talvez por sua configuração incorpórea e
absolutamente abstrata, a música pode ainda se dar ao luxo de ser
romântica e pueril, sem ser piegas.
Mas mesmo na música,acredito que as boas intenções estejam
definhando.Não se consegue mais ser ingênuo sem fazer rir, sem provocar
um riso de escárnio e um esgar de sarcasmo em quem já sabe demais
(excessivamente, insuportavelmente demais) a respeito de certas coisas
inexoráveis da vida.
Talvez Jobim tenha sido o último de uma espécie mais que extinta.Sua
música linear, melodiosa, não mais se adapta à maneira como se vive,
como se pensa, como se ama.Infelizmente, não há mais pureza possível.A
dor e a dissecação da dor e de outros sentimentos andam à espreita da
pureza desejada.Só mesmo um talento imensurável para escapar incólume da
conspurcação indelével de quem vive e se emociona.
O tempo é, por exemplo, de Godard, um dissecador de emoções; de
Schoenberg, um dissecador da própria música, de Joyce, um dissecador das
palavras.O romantismo está, até que alguém o ressuscite,
inexoravelmente morto, sobrando a uns e outros trôpegos o papel de
tentar ressuscitá-lo.Os últimos todos que tentaram falharam feio.
Não se ama mais ao som de Tom Jobim, ou de Cole Porter, ou de
Gershwin, sem que se tenha uma melancólica sensação de nostalgia de um
tempo morto, em que as emoções eram mais castas e encantadoras em sua
pureza.
Infelizmente, uma vez rompido o hímen, não mais se recupera a virgindade.