2005-01-31 20:31:00

       
  

Roubo

Primeiro roubaram-lhe a inocência, a festividade dos gestos incoerentes.
Depois impuseram o pudor, o rubor das faces, arrancaram as reações deslumbradas.
Mataram-lhe o espanto,usurparam as ilusões de sabores amenos,
extraindo a fórceps o gosto açucarado dos contos de fadas.

Ainda assim mantinha as ilusões do porvir ou de um presente encantado e estático.
Mas também lhe tiraram o futuro e emporcalharam o passado.
Sobrou-lhe a mancha úmida de um presente embotado e permanente.

Violentado pela realidade imposta,
ainda procurou alento em seu autismo quase póstumo,
nas gentilezas propiciadas por seus esconderijos
que davam acesso ao que sobrara de seus adornos,
onde ainda encontrava as cores que ilustravam sua fuga do que estava de fora.

Mas também destruíram estes atalhos, apagaram os restos das construções de si mesmo,
inventaram um personagem e lhe colaram uma face indelével, estranha aos seus esboços.

Desconsolado, ainda tentou  manter-se de pé,
amparado em seus pés de barro.
Mas estes mesmos foram destruídos,
esmigalhados pelas hienas implacáveis
cujo riso projetado ainda ecoa em suas entranhas.

Desesperado por sentir seu próprio peso,
que nunca antes percebera.
E que cruelmente lhe deram conta,
quando o aleijaram.

Ainda tentou voar,
mas descobriu tarde que as asas estraçalhadas
já lhe pesavam mais do que podia suportar.

Descobriu então que o chão que o amparava também o prendia,
Também o puxava inexoravelmente para baixo.

Em seu vôo aparvalhado,
fora tragado por esta força gravitacional desumana,
Concreta e abjeta como o estupro de uma criança.

Da queda,restaram  seus pedaços
que ainda teimam  em sobreviver à sua morte,
que insistem em permanecer ativos neste chão frio e imundo,
onde (não) repousa sua lápide de indigente, sem epitáfio.

  

2005-01-28 09:49:00

       
  

A estética chiquérrima da fome

A
base de todas as culturas são os estereótipos.Desde nações, grupos
étnicos, tribos até grupinhos adolescentes, o estereótipo, o clichê é o
padrão, a massa de qualquer cultura.O meio mais adequado em que grassa o
estereótipo é a indústria da moda, onde impera a pseudice e a
peruagem.Ora, não chega nem a ser uma crítica ao império da moda dizer
que ela é estereotipada e que promove o estereótipo, uma vez que ela se
molda no superficial.Mas a questão é que a coisa extrapola e está
tomando proporções tragicômicas.

 

O
problema dos modistas(estilistas, costureiros, sei lá) é que eles se
levam a sério e se consideram artistas.A palavra ‘’arte ‘ é a mais
conspurcada em nossos tempos.Criação e bom gosto apenas não produzem
arte.Arte diz alguma coisa, provoca alguma coisa que o leva a uma
compreensão(ou confusão mesmo) maior em relação a você mesmo e o que o
circunda.Duas saias e um bermudão não causam este tipo de efeito.

 

A
moda saiu de seu humilde lugar de reflexo de comportamento de uma época
para se tornar a ditadura do comportamento.Não é de se estranhar que
vivamos em uma das épocas mais fúteis, estéreis e superficiais da
história humana.Afinal de contas, a falta de conteúdo se preenche com a
superfície.Ou seja, é a glória para os estilistas e sua ‘’arte’’ do
nada.A imaginação dos rapazes, com o ego inflado pelos ventos do nada de
nossa era, voa.Burcas ,adereços de terroristas ganham glamour na
passarela, trapos esfarrapados pontificam como a iconografia do chique
de ser miserável…Enfim, o caos ganha um tom blasé para o estilismo
profissional.

 

A
lógica do mundo da alta costura é exatamente esta:tornar superficial a
tragédia humana, dar pinceladas de rosa-choque em tintas fortes e
dramáticas.Não existe drama na ‘’arte’’ da moda.Tudo é comédia de
costumes, evidentemente paga a altíssimos custos,e tão valiosa como um
quadro de Picasso.

 

Ah,
as intenções sócio-políticas da moda não se impõem apenas no
vestuário.Reparem nos corpos das modelos e vejam como estão cada vez
mais anoréxicas, lembrando a fome da Somália e da Etiópia.Segundo a
moda, também é chiquérrimo passar fome.E mais chique ainda para uma
mulher é ter um corpo que mais parece um esqueleto, sem curvas, sem
carne, sem nada.Eu, ínfima minoria, ainda acho humildemente que são a
curvas que definem a sensualidade feminina.Tenho esta mania besta e
heterossexual de ainda gostar de seios, quadris salientes, coxas grossas
e outras variações deste gênero em extinção:a mulher opulenta.Mas quem
sou eu diante do gosto ‘’metrossexual’’ dos estilistas que impõem sua
estética pós-moderna e famélica às mulheres… Tenho esta mania besta de
continuar preferindo(milhões de vezes, aliás) uma Monica Bellucci a uma
Gisele Bundchen.

 

Com
esta estética da fome, os estilistas querem tirar aquilo que a mulher
tem de mais de valioso, que não só define sua feminilidade como a sua
personalidade:a curva.Querem transformar as mulheres em tábuas retas,
sem ambigüidade de corpo e de personalidade, em robôs que seguem à risca
os ditames comportamentais e estéticos dos estilistas,que, diga-se de
passagem, não costumam gostar muito das moças…(quem sabe não seria um
espécie de vingança?).

 

Mas
enfim, moda é isto mesmo.Imposição de valores físicos e
espirituais.Aliás,cortam o espírito, esta coisa ‘’demodé’’, pela raiz
até sobrar só o corpo, ou melhor, o osso.O mais irônico de tudo é que
qualquer estilista quando perguntado sobre a ditadura da moda, argumenta
que não, que a liberdade e o bom senso de cada um é que delimita o que
se deve usar.’’A palavra de ordem é individualidade’’, dizem
eles.Individualidade, claro, mas devidamente etiquetada com um Karl
Lagerfeld legítimo,  e desde que se tenha 1,80 de altura e 45 quilos.

  

2005-01-24 21:24:00

       
  

Reza brava

Sempre mantive uma relação
conflituosa, estranha, complicada e mal resolvida com Deus.Primeiramente
por ter dúvidas da existência do próprio.Nunca consegui acreditar em um
Deus criado aos moldes das humanidade.Explico:não consigo acreditar em
um deus católico, muçulmano,cardecista, judeu ou seja lá o que
for.Moldes de divindade não se adaptam a uma crença que tenha
mérito.Regrinhas metafísicas, dogmas de fé são tão válidos quanto
história em quadrinhos.A única possibilidade de crença se refere à
intuição,ao instinto mesmo.O resto que diz respeito ao comportamento
humano, a ética resolve, sem enfiar Deus no meio, que é pecado de
pretensioso teológico.

Vejamos um exemplo da lógica católica, a qual eu
tenho mais intimidade.A fé pressupõe inocência, ingenuidade.O amor que é
pago com o próprio amor, não é mesmo?Mas quem já não fez barganhas com
Deus, sabendo de antemão que um paraíso de delícias espera pelos justos e
bondosos(ainda que este paraíso em potencial seja aqui mesmo)?Como ser
inocente, sabendo de antemão das regras teológicas de redenção?Se Deus é
amor e perdão, vale a pena uma vida inteira de sacanagem, que no fim é
só se arrepender e pronto.Ah sim, o arrependimento tem que ser
sincero.Mas vejam só:eu já me arrependi sinceramente mil vezes de erros
cometidos;por que seria difícil se arrepender de uma vida inteira?Ao
menos  teria mais liberdade e menos peso na consciência no trajeto.

O fato é este.Pressupondo esta inocência, esta
ingenuidade como premissa básica para a salvação, o catolicismo nos
coloca em uma sinuca de bico, nos transforma em canalhas potenciais que,
sabendo das regras do jogo, se adaptam a elas.Dá no mesmo que a venda
de indulgências na idade média.Só que agora não se paga nada.Vale apenas
um peso constante na consciência, a sensação permanente de estar errado
o tempo todo.

Falo com a experiência de ser um indeciso
religioso.Nunca me fixei em nenhuma regrinha teológica, mas também nunca
consegui escapar ileso das influências do catoliciosmo e dos cheiros de
incenso e dos cantos desafinados das rezadeiras de procissão que ainda
assombram meus pesadelos.Sou um ateu frustrado, que nunca deu conta de
não acreditar em nada, sem forças para manter-se de pé por si
mesmo.Tenho necessidade vital de olhar para cima(ou pra baixo mesmo) e
pensar que existe alguma coisa que rege o que me circunda.Eu sei, os
engraçadinhos dirão que Freud explica.Talvez, mas não de todo.Freud
explicaria algumas de nenhumas neuroses(que eu também explico, ora), mas
não explica a sensação de impotência diante do imponderável que é
inerente à humanidade inteira, inclusive a ele, o próprio Sigmund.

Esta condição de indecisão, de perplexidade e de
abandono não é só minha.É a verdadeira de cada um de nós.Acreditamos
naquilo que queremos acreditar, nos auto sugestionamos para não
enlouquecermos de vez.Mas o verdadeiro sentido das coisas é a falta
de sentido das mesmas, a verdadeira razão é o caos.Somos forçados a
imaginar sistemas filosóficos, sociológicos, políticos, teológicos para
darmos conta de nós mesmos, de nossa incômoda situação de falta de
orientação.A teologia, especificamente, é um atenuante para a
consciência da fragilidade da vida e da certeza da morte.’’creio porque é
absurdo’’, diz uma das leis teológicas.Ora, assim é fácil…

Mas é curioso como a própria teologia se deixa
surpreender às vezes com aquilo que ela não consegue abarcar através de
suas contradições flagrantes.Foi São Tomás de Aquino quem disse que ‘’a
verdade é a adequação da inteligência à realidade’’.Ora, esta é frase
mais relativa de toda a história da filosofia.Diz quase explicitamente
que a verdade não existe, que ela depende dos referenciais, e o que é
pior, o que é mais pura representação da ‘’verdade’’.Ah, meu caro Tomás,
antes tivesse ficado calado como Jesus Cristo quanto perguntado por
Pilatos sobre ‘’o que é a verdade’’.Foi o silêncio mais eloquente dos
evangelhos.

Pois eu digo , parodiando são Tomás, que a teologia é a adequação do
absurdo à falta de sentido.Não se delimita o sobrenatural através de
meios naturais, não se abarca a divindade(que é uma criação humana)
através de meios humanos, não se examina o que não se vê através de
métodos palpáveis.Repito:estamos todos condenados à falta de sentido.O
que nos resta é inventar o sentido que nos norteia, mas sem pretensões
divinas.Ou mesmo rezar para que este sentido apareça.É o que faço todas
as noites:rezar, com duplo peso na consciência:por estar traindo minha
razão através do meu sentimento arraigado de religiosidade e traindo
minha religiosidade com as dúvidas impostas pela razão.Não, Freud não
explica.Nem ele.

  

2005-01-20 23:57:00

       
  

Lembranças da nova era

Saudações aos velhos novos tempos
que trazem lembranças da nova era
recordações antevistas de expectativas mortas
sempre ressuscitadas na memória prenhe
de desejos inconclusos, frustrados e sempre revisitados.

Desejo imorredouro que reacende no momento seguinte ao seu fim
que cega o passado, atravessando o tempo e a razão
tornando jovem a pele ressequida
reconstruindo a unha podre e encravada
para novamente descamar a pele
para novamente apodrecer a unha

Maré de águas turvas e fundas
pretensa reciclagem de águas contínuas
emprenhando a praia redundante
cartesianamente casta como um primeiro beijo profissional

Moto contínuo de palavras ditas, reditas
pretensamente inauditas
cão em círculo mordendo o próprio rabo
Furacão lento , lânguido
em infindável e tedioso rodopio
ladrilhos simetricamente enfileirados, miméticos
em seu perfeito aborrecimento continuado

varizes insidiosas, rugas deseducadas que vão embaralhando os contornos,
entortando as retas, opondo as direções exatas

Apelo de permanência, de procura deseperada de um chão
cuja origem incerta já se liquefaz em seu fim duvidoso.


 

  

2005-01-17 01:05:00

       
  

Valores

Quanto vale um sorriso forçado, um aceno a uma
criatura detestável?Quanto vale um abraço em um parente chato ou um
tapinha nas costas de um patrão carrasco?Pouco ou muito? Todos nós já
nos vimos em um tipo de situação parecida, em que nos vendemos, ainda
que a baixos custos, em troca de alguma coisa.

Compra e venda não pressupõem apenas o uso específico
de dinheiro, que é apenas um símbolo, um bem artificialmente produzido
para representar o eterno escambo que é o relacionamento humano.Todos
vendem e compram alguma coisa, trocam algo em troca de outra coisa.Jogo
de interesses.Canalhice isto tudo?Sei lá.Mas é a natureza humana como
ela é.Não é por acaso que o capitalismo é o sistema que mais se parece
com a própria natureza humana, que mais se molda ao espírito de
competitividade inato em todas as pessoas.Prostituição é apenas a
manifestação mais crua e direta deste jogo de interesses.Menos hipócrita
talvez e por isto mesmo mais incômoda de se ver.

A prostituição nossa de cada dia se dá no
cotidiano, nos pequenos gestos de adulação, nos sorrisos complacentes,
nos apertos de mão obrigatórios.Todos somos mais ou menos
prostitutos.Mesmo em termos ditos nobres como a amizade, por
exemplo:aqui a prostituição implica uma troca de favores, de
cavalheirismo , de elogios e de gentilezas que provocam uma mútua
massagem de egos.Prostituição é apenas um nome canhestro dado a uma
prática comum que marca um dos pilares do relacionamento humano.

Querem um exemplo mais forte ainda? O amor.Sim, o
amor mesmo.Compra-se diariamente o amor do objeto amado(nome exato,
aliás) através das carícias , ternuras e afetos obrigatórios.Sei, parace
estranho falar em obrigação quando se fala em um sentimento puro.Mas
senhores, todos sabemos que um amor não vive sempre de êxtases e picos
orgásticos o tempo todo.O cotidiano mina paulatinamente qualquer tipo de
poesia.A construção de uma relação amorosa se dá por compras e
vendas(mais uma vez) de sorrisos , gestos , declarações, etc.Pode ser
uma obrigação deliciosa até certo ponto, mas ainda assim é uma obrigação
para que se mantenha o amor.

Não há ilusões quanto ao fato de que a humanidade é
um mercado.Mas isto não é de todo mal.Há valores interessantes também,
como a verdade(o que tento fazer aqui.Tento), a generosidade, a
gentileza, e, entre outros, o próprio amor também.Todo o aspecto
aparentemente politicamento incorreto do que digo não passa de um
aspecto terminológico.O que se pode fazer(e não há outra escolha) é
lidar com estes mesmos valores, tentando não inflingir as leis do
mercado.Poderiam ser chamadas de ética estas leis.Mas é aí é que a coisa
se confunde.Não há, a despeito de certas convenções, regras estritas
que regulem este mercado.Não há estado existente que possa regular as
ações e, por conseguinte,possa controlar o escambo dos valores
humanos.Tudo ou quase tudo é relativo neste mercado humano.A humanidade é
o verdadeiro sonho dos liberais, o paraíso do liberalismo, onde não há
estado mínimo, não há estado nenhum, onde as ações não necessariamente
valem o quanto pesam e todos são livres para tirarem o proveito e o
lucro que quiserem de todas as situações possíveis.Os valores se
confundem nesta selva de investidores que somos todos nós.Sim, nós
mesmos:investimos agressivamente , o tempo todo em nossos amores,
em nossas relações, em nossos filhos, em nossas amizades, em nossos
destinos.Não temos outra escolha.Viver é investir infinitamente.

Mas há , neste mercado selvagem, uma lei triste , quase abjeta, mas
indelével.Assim como no capitalismo, a vida humana tem perdedores e
vencedores.E todos sabemos que o número de perdedores no mercado(humano e
financeiro) é infinitamente maior.Para cada vitória, há um milhão de
fracassos.Mas esta lei talvez seja a única que não se molda exatamente
ao espírito capitalista em todas as suas nuanças.Explico:a vitória e a
derrota de que falo são metafóricas, dizem respeito a valores fixos
de bem estar.E é aqui que a coisa se complica novamente.Se os valores
são relativos, então vitórias e derrotas também são relativas,
dependendo do lucro que se obteve neste mercado que é a vida.Não deixa
de ser um consolo para aparentes perdedores, que talvez ganhem alguma
coisa no final das contas, ou de acordo com os valores, ganhem tudo
fracassando onde outros (também aparentemente) ganham.

Também não deixa de ser uma ironia que o mercado capitalista,tal como
ele é, sem este negócio de ‘’vida’’ no meio, só seja concreto porque se
baseia em um bem simbólico como o dinheiro. No mercado humano, não há
simbolismo possível:tudo é o que é, e nem sempre o que é aparenta ser
exatamente o que é.Complicado?Pois é, não basta estudar economia de
mercado para entrar no mercado de valores humanos…

  

2005-01-13 00:14:00

       
  

O teatro da curva

Há certas expressões que, pelo uso
exaustivo, apodrecem.Há outras ainda piores que são usadas
ostensivamente para tentar(em vão) mascarar a mediocridade e o vazio do
autor que as emprega.Querem um exemplo clássico?’’Condição
feminina’’.Querem uma pior ainda? ‘’Essência feminina’’.Já chegam a
feder estas duas, de tão podres.

 

Pois
pasmem que eu vou tentar escrever algo sobre a a condição(ai…)
feminina sem cair no ridículo e sem pedir perdão à Madam Beauvoir,
autora da expressão, cujo maior feito filosófico foi o de ter se casado
com seu bom marido Jean Paul Sartre.

 

Então lá vai:

 


algo de intrinsecamente cruel em uma mulher, sutilmente nefasto e que
apavora e seduz . Mulheres detém o poder sexual pleno sobre os homens, e
baseado nisto afiam suas garras e os fazem de joguetes em suas mãos.
Mulheres escolhem seus parceiros , até mesmo quando os homens pensam que
as escolhem. Há algo de ardiloso na maneira como nos apaixonamos por
elas, como se fôssemos presas fáceis e (falsamente) inconscientes deste
ardil feminino. Quem detém este poder sexual deveria , por conseguinte,
deter o poder sobre o mundo, mas aparentemente não é o que acontece.
Aparentemente, eu disse.

 

Não
se chega, nunca se chega ao fundo das intenções de uma mulher. O que se
vê é um eterno jogo de aparências, como se a sinuosidade, a curva fosse
a característica fundamental feminina. Reparem:o corpo feminino é
sinuoso, curvilínio. O orgasmo feminino nunca é direto e sempre passa
por caminhos tortuosos. A voz , os olhares, os gestos
geralmente não são taxativos ,parecendo sempre encobrir segundas,
terceiras e quartas intenções. Até quando elas não sabem o que querem ( e
geralmente não sabem), o conseguem por instinto. Não é à toa que
mulheres não confiam em mulheres. Elas são intrinsecamente solitárias e
têm aversão à comunidade, assim como os escorpiões. A vida em grupo é
mera caixa de espelhos para elas, de onde tiram proveito para conferir
suas múltiplas imagens e facetas projetadas em seus afetos. O outro é
sempre um meio de ressonância delas mesmas. Mulheres são inexoravelmente
únicas, sozinhas, e, por isto mesmo, trágicas.
Sim,
mulheres amam melhor, é claro. A solidão metafísica não impede que seus
sentimentos sejam mais aflorados que os dos homens. Mas elas também
odeiam melhor, desprezam melhor, pecam melhor e matam melhor. O ofício
feminino é o do teatro da curva. A teatralidade é o pilar que sustenta a
persona feminina, a máscara feminina, na tradução literal. Tudo na
vida, é, em primeira e última análise, representação. E mulheres
representam melhor seus papéis, extraem melhores matizes de desgosto, de
raiva, de paixão, de medo, de covardia, de coragem e, claro, de amor.

Mas
têm uma incompetência grave neste palco: não têm talento para a
comédia. São essencialmente e irrevogavelmente dramáticas. A ironia não é
o forte delas. Carregam naturalmente nas tintas, são todas medéias
tiranicamente
enlouquecidas (sem exceção) pelas suas fantasias de amor, de casamento,
de maternidade. Seus contos de fadas não são infantis, são disfarces
para suas tragédias gregas que arrastam tudo e todos em suas construções
de areia. Sim, tudo na vida é, em primeira instância, construção de
areia, mas a grande tragédia das moças é exatamente tomar por concreto
aquilo que desmorona com um sopro.
Em sua inegável superioridade de
sentimentos, de persuasão, de fineza intelectual, de sutileza, as
mulheres, no fundo e na superfície mesma, são ingênuas. E este, meus
caros, é o único ‘’fundo ‘’ a que se pode chegar, que se pode alcançar
em uma mulher:a sua trágica inocência, descoberta debaixo de sorrisos
cruéis e carícias maternas.
Mas ainda assim, ou por isto mesmo, as amamos

 

 

  

2005-01-09 19:54:00

       
  

Rebeldia por conta da freguesia

Nada mais constrangedoramente
patético e fora de contexto que o anacronismo, em todas as suas
variantes:não saber envelhecer, usos fora de época, deturpações de
contextos, enfim, deslocamentos temporais mal inseridos, mal enfiados
mesmo.

Querem um exemplo simples?O Rock.Tipo de música mais
voltada a um tipo de atitude que às suas virtudes musicais mesmo, o tal
Rock and Roll surgiu como um movimento musical de rebeldia, de
contestação ao status quo.Confesso que nunca fui muito com a cara da
coisa, mas até achava engraçadinhas algumas canções dos Beatles , dos
Rolling Stones e subgêneros(Confesso:já nasci velho), mas hoje em dia
não deixa de parecer no mínimo ridículo observar um Mick Jagger com mais
de sessenta anos requebrando no palco como se fosse um garotão rebelde
de vinte.Mas vejam só, não é só uma questão de idade do praticante.O
envelhecimento também é do próprio Rock, entendem?Como não achar
patético que jovens bandas que têm uma postura rebelde, agressiva,
alternativa(alternância a que, cara pálida?) sejam dóceis instrumentos
de fabricação de dinheiro para as gravadoras e ajam como bonecos na mão
delas?O pirecing colocado nos genitais para reforçar a agressividade, o
cabelo repicado para ressaltar o desmazelo, os ensaiados gestos obscenos
para ratificar a rebeldia contra o ‘’sistema’’, o qual eles próprios
alimentam, e do qual se alimentam.Ora , façam-me o favor…

O tal Rock morreu.Todo roqueiro hoje em dia me lembra
o Supla:infantil, ingênuo e filhinho de papai(ou mamãe, no
caso);roqueiros que se rebelam pelo prazer estético da rebeldia,porque
acham bonitinho se rebelar, mas no fim do mês querem ver quando
rendeu a bilheteria.O Rock, no caso, é um exemplo aleatório.Há também
toda uma atitude de rebeldia, geralmente importada dos anos sessenta que
é totalmente anacrônica, fora de contexto.O caráter alternativo de toda
uma geração foi assimilado pela cultura de massa e tranformado em
mainstream, em moda.Por isto a infestação dos hippies de shopping
centers, dos heavy metal que frequentam o macdonald’s e outras
aberrações do gênero.

A rebeldia dos anos sessenta podia ser
utópica,ingênua, mas ao menos era autêntica.Hoje, nesta nossa
melancólica era amorfa em que cada um quer apenas defender o seu, a
juventude, tonta pela falta de atalhos e referências, emburrecida pela
mediocridade vigente, adota a casca do que se chama(ou se chamava)
rebeldia.Não se rebelam contra nada, porque não sabem de nada.Acham
bonitinho xingar o Bush porque todos o xingam, mas não entendem patavina
de política externa, assim como acham bonitinho usar roupas de couro,
rasgadas, e argolas penduradas no nariz.É tudo de fora para dentro.É a
revolução do oco, do vazio.Enquanto pensam ser rebeldes, defendem
implicitamente os pilares do consumismo ligeiro, rápido.A rebeldia hoje é
uma griffe.

É uma característica básica de toda a juventude a de
ser idiota.É uma fase alegre da vida, bela, mas é imbecil mesmo.Tem lá
seus Rimbauds e Mozarts da vida, mas bem sabemos que são exceções.Não é
característica própria desta geração de fim/começo de milênio a
imbecilidade.Mas é uma coisa nova a compra do meio alternativo.A
alternância como o padrão de consumo é um dos paradoxos mais
tragicômicos da toda a história da humanidade.A impressão que se tem é
que um rebelde, um verdadeiro rebelde hoje deveria sair às ruas de
smoking e gel nos cabelos em passeata de um só, clamando por bons modos à
mesa.Seria também patético, mas ao menos seria mais autêntico e
original que os rebeldes alternativos hoje fabricados em massa em
Shopping Center.

 

  

2005-01-06 20:21:00

       
  

Da arte e da necessidade de falar mal

Tese repetida repetidas vezes que diz que falar mal é
fácil, que polemizar é fácil;basta soltar os cachorros e uns esgares de
odiozinhos e sorrisinhos irônicos e pronto:os holofotes se acendem e os
aplausos fáceis abundam.Me enchi de ouvir este tipo de
coisa.Difundida(com mais pobreza verbal, claro) por intelectuaizinhos
assépticos e ocos como José Wisnick, jornalistas cordeirinhos como Caio
Blinder(ex-‘’sparring’’ de Paulo Francis) e ratificada por gente com o
estofo moral de um Gugu Liberato.Bobagens tediosas como a que diz que há
que se recuperar os valores nacionais,o sentimento de grandeza de um
povo , de uma raça, ou de sei lá o que.Já não dou conta mais de ouvir
este tipo de coisa.Saturei.

Primeiramente, falar mal não é para qualquer
um.Requer talento, estilo e critério.Ofender é uma arte que envolve
sutileza, perspicácia no julgamento e muita ética.Não se sai falando até
da própria sombra como cão raivoso, só pelo bel prazer de mostrar a
linguinha para todo mundo.Isto é coisa de adolescente rebelde espinhento
com piercing no nariz e de senhoras histéricas com calores de
menopausa.Não, há que se escolher o alvo, que se ter a delicadeza de
arrombar somente o que ou quem merece ser esculhambado.Chutar cachorro
morto é covardia.E também não basta morder a canela de gente graúda.Tem
de saber envenenar com lentidão, de torturar com malemolência e
jeitinho, e depois dissecar o cadáver com calma e certa gentileza.Falar
mal não é fácil e não é coisa para amadores.

Fácil mesmo é o elogio, a apologia, mães da adulação,
do compromisso, do rabo preso, pilares da nossa cândida cultura
tupiniquim, que desde Gilbertro Freyre, tenta desmesuradamente adocicar
os matizes e sabores nacionais.O Brasil deveria ser um exemplo da mal
falação.Os podres são tão vastos que deveriam ser deletados pela língua
num contínuo infinito.A negação é o caminho primeiro para a purificação
da alma.Deveríamos dar o exemplo e fundar uma escola do mal falar, cujo
objetivo seria o de chutar os pés de barro de todas as
instituições.Polemizar não é só fazer gracinha, mas um exercício moral e
intelectual nobilíssimo.Os perdigotos de uma polêmica são os
culhões de um povo, de uma sociedade.Tenho horror a estes conceitos,
‘’povo’’, ‘’sociedade’’,e só acredito neles quando são auto negados.Aí
então quase me emociono ao descobrir que a única identidade coletiva só
pode aparecer através do contraste alimentado pela porrada metafórica,
pela iconoclastia, pela violência verbal que destrói os clichês, que
lapida a verdade.Ah, a verdade não existe?Então que não sobre nada, ora
pois.Que as únicas coisas remanescentes sejam sorrisinhos irônicos e
sarcásticos mesmo.Pelo menos assim ninguém se levará tão a sério.

Levar-se a sério é a causa primitiva de todos os
males.Todos, eu disse.Por isto tenho arrepios, engulhos quando ouço
alguém mencionar valores individuais ou coletivos.Me soa auto afirmação
de adolescente.Os valores, se existirem, surgem naturalmente, não
precisam ser berrados na esquina.Já os vícios agem sempre na surdina, e,
de uma maneira ou de outra, sempre prevalecem.Duvidam?Dêem uma
olhadinha na história da humanidade…

Por isto falar mal é um bem mais que necessário, mais
que urgente.Falar mal é um exercício de civilidade, de amor ao
próximo.Só se lava uma herança maldita cuspindo e pisando nela.Toda
sociedade que se preza deveria ter a grandeza da auto destruição.Assim ,
quem sabe, se contrói alguma coisa que preste depois de tudo que foi
destruído, de toda a lama deixada para trás.E se a coisa apodrecer de
novo?Pau em tudo novamente.Mas sempre com carinho , claro.E com todos de
mãos dadas, que somos cordatos e gentis.Ora, não estamos mais na
pré-história, embora às vezes tenhamos um sentimento nostálgico em
relação ao uso do tacape.