2005-01-24 21:24:00

       
  

Reza brava

Sempre mantive uma relação
conflituosa, estranha, complicada e mal resolvida com Deus.Primeiramente
por ter dúvidas da existência do próprio.Nunca consegui acreditar em um
Deus criado aos moldes das humanidade.Explico:não consigo acreditar em
um deus católico, muçulmano,cardecista, judeu ou seja lá o que
for.Moldes de divindade não se adaptam a uma crença que tenha
mérito.Regrinhas metafísicas, dogmas de fé são tão válidos quanto
história em quadrinhos.A única possibilidade de crença se refere à
intuição,ao instinto mesmo.O resto que diz respeito ao comportamento
humano, a ética resolve, sem enfiar Deus no meio, que é pecado de
pretensioso teológico.

Vejamos um exemplo da lógica católica, a qual eu
tenho mais intimidade.A fé pressupõe inocência, ingenuidade.O amor que é
pago com o próprio amor, não é mesmo?Mas quem já não fez barganhas com
Deus, sabendo de antemão que um paraíso de delícias espera pelos justos e
bondosos(ainda que este paraíso em potencial seja aqui mesmo)?Como ser
inocente, sabendo de antemão das regras teológicas de redenção?Se Deus é
amor e perdão, vale a pena uma vida inteira de sacanagem, que no fim é
só se arrepender e pronto.Ah sim, o arrependimento tem que ser
sincero.Mas vejam só:eu já me arrependi sinceramente mil vezes de erros
cometidos;por que seria difícil se arrepender de uma vida inteira?Ao
menos  teria mais liberdade e menos peso na consciência no trajeto.

O fato é este.Pressupondo esta inocência, esta
ingenuidade como premissa básica para a salvação, o catolicismo nos
coloca em uma sinuca de bico, nos transforma em canalhas potenciais que,
sabendo das regras do jogo, se adaptam a elas.Dá no mesmo que a venda
de indulgências na idade média.Só que agora não se paga nada.Vale apenas
um peso constante na consciência, a sensação permanente de estar errado
o tempo todo.

Falo com a experiência de ser um indeciso
religioso.Nunca me fixei em nenhuma regrinha teológica, mas também nunca
consegui escapar ileso das influências do catoliciosmo e dos cheiros de
incenso e dos cantos desafinados das rezadeiras de procissão que ainda
assombram meus pesadelos.Sou um ateu frustrado, que nunca deu conta de
não acreditar em nada, sem forças para manter-se de pé por si
mesmo.Tenho necessidade vital de olhar para cima(ou pra baixo mesmo) e
pensar que existe alguma coisa que rege o que me circunda.Eu sei, os
engraçadinhos dirão que Freud explica.Talvez, mas não de todo.Freud
explicaria algumas de nenhumas neuroses(que eu também explico, ora), mas
não explica a sensação de impotência diante do imponderável que é
inerente à humanidade inteira, inclusive a ele, o próprio Sigmund.

Esta condição de indecisão, de perplexidade e de
abandono não é só minha.É a verdadeira de cada um de nós.Acreditamos
naquilo que queremos acreditar, nos auto sugestionamos para não
enlouquecermos de vez.Mas o verdadeiro sentido das coisas é a falta
de sentido das mesmas, a verdadeira razão é o caos.Somos forçados a
imaginar sistemas filosóficos, sociológicos, políticos, teológicos para
darmos conta de nós mesmos, de nossa incômoda situação de falta de
orientação.A teologia, especificamente, é um atenuante para a
consciência da fragilidade da vida e da certeza da morte.’’creio porque é
absurdo’’, diz uma das leis teológicas.Ora, assim é fácil…

Mas é curioso como a própria teologia se deixa
surpreender às vezes com aquilo que ela não consegue abarcar através de
suas contradições flagrantes.Foi São Tomás de Aquino quem disse que ‘’a
verdade é a adequação da inteligência à realidade’’.Ora, esta é frase
mais relativa de toda a história da filosofia.Diz quase explicitamente
que a verdade não existe, que ela depende dos referenciais, e o que é
pior, o que é mais pura representação da ‘’verdade’’.Ah, meu caro Tomás,
antes tivesse ficado calado como Jesus Cristo quanto perguntado por
Pilatos sobre ‘’o que é a verdade’’.Foi o silêncio mais eloquente dos
evangelhos.

Pois eu digo , parodiando são Tomás, que a teologia é a adequação do
absurdo à falta de sentido.Não se delimita o sobrenatural através de
meios naturais, não se abarca a divindade(que é uma criação humana)
através de meios humanos, não se examina o que não se vê através de
métodos palpáveis.Repito:estamos todos condenados à falta de sentido.O
que nos resta é inventar o sentido que nos norteia, mas sem pretensões
divinas.Ou mesmo rezar para que este sentido apareça.É o que faço todas
as noites:rezar, com duplo peso na consciência:por estar traindo minha
razão através do meu sentimento arraigado de religiosidade e traindo
minha religiosidade com as dúvidas impostas pela razão.Não, Freud não
explica.Nem ele.

  

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