2005-01-31 20:31:00

       
  

Roubo

Primeiro roubaram-lhe a inocência, a festividade dos gestos incoerentes.
Depois impuseram o pudor, o rubor das faces, arrancaram as reações deslumbradas.
Mataram-lhe o espanto,usurparam as ilusões de sabores amenos,
extraindo a fórceps o gosto açucarado dos contos de fadas.

Ainda assim mantinha as ilusões do porvir ou de um presente encantado e estático.
Mas também lhe tiraram o futuro e emporcalharam o passado.
Sobrou-lhe a mancha úmida de um presente embotado e permanente.

Violentado pela realidade imposta,
ainda procurou alento em seu autismo quase póstumo,
nas gentilezas propiciadas por seus esconderijos
que davam acesso ao que sobrara de seus adornos,
onde ainda encontrava as cores que ilustravam sua fuga do que estava de fora.

Mas também destruíram estes atalhos, apagaram os restos das construções de si mesmo,
inventaram um personagem e lhe colaram uma face indelével, estranha aos seus esboços.

Desconsolado, ainda tentou  manter-se de pé,
amparado em seus pés de barro.
Mas estes mesmos foram destruídos,
esmigalhados pelas hienas implacáveis
cujo riso projetado ainda ecoa em suas entranhas.

Desesperado por sentir seu próprio peso,
que nunca antes percebera.
E que cruelmente lhe deram conta,
quando o aleijaram.

Ainda tentou voar,
mas descobriu tarde que as asas estraçalhadas
já lhe pesavam mais do que podia suportar.

Descobriu então que o chão que o amparava também o prendia,
Também o puxava inexoravelmente para baixo.

Em seu vôo aparvalhado,
fora tragado por esta força gravitacional desumana,
Concreta e abjeta como o estupro de uma criança.

Da queda,restaram  seus pedaços
que ainda teimam  em sobreviver à sua morte,
que insistem em permanecer ativos neste chão frio e imundo,
onde (não) repousa sua lápide de indigente, sem epitáfio.

  

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