2005-03-31 04:37:00

       
  

Soluções

Para não dizerem que sou enjoado e
que minha iconoclastia é fruto de depressão mal curada, frustraçõs
pessoais e melancolia patológica.Não diriam mal nem falariam mentira,
mas ainda assim, resolvi escrever algo edificante,não exatamente alguma
apologia, mas umas dicas e soluções a curto, médio ou longo prazo para
um mundinho melhor, dependendo da boa vontade dos consumidores.

Pois bem.Soluções diretas e pragmáticas então.Virar
de ponta cabeça os valores culturais.Simples assim, nada mais, e
acabariam quase todos os problemas de vulgaridade, grosseria e má
educação congênita.O maior chamarisco cultural do país é o futebol,
não?Pois então que fosse para o fundo do poço, se tranformasse em um
interesse quase sub reptício, afeito a umas poucas criaturas
extravagantes.Em vez do fanatismo futebolístico, a mania patológica por
poesia inglesa do século XIX , o gosto quase orgástico pela prosa
francesa de Flaubert e de Proust, da poesia lírica do período
pré-helenístico.Poder-se–ia organizar times passionais em que fanáticos
sairiam quase às vias de fato pelas suas paixões:’’Nabokov é melhor que
Dostoievski!’’, ‘’não, não,Kant não chega no dedinho mindinho de
Nietzsche!’’,’’seu energúmeno, a poesia árcade dá de dez nestas
baboseiras pós modernistas!’’…e por aí vai.Tudo com torcida
organizada, com direito a buzinaço e choro convulsivo.Ao menos,
estaríamos sujeitos a algumas discussões de mérito e não nos
submeteríamos às maçantes discussões de mesa de futebol em que
participantes discutem o problema do joelho de Juninho Paulista com a
paixão fervorosa de uma hecatombe nuclear.

Ao invés da cachaça como preferência alcoólica
nacional, o vinho.Seria salutar observar um monte de ferreiros e
mecânicos suarentos e desdentados pedirem aos arrulhos em mesas de bar
um Bordeaux 68 ou um Porto legítimo e ainda reclamarem da safra.E
devidamente realizarem todos os processos de degustação antes.Em vez de
cachaceiros, enólogos.

No lugar do popular novelão tupiniquim e dos
seriadinhos debilóides do tipo ‘’Friends’’, sessões diárias de Bergman,
Godard, Fellini e outros do tipo, sempre com o artifício do público
escolher o filme do dia seguinte.’’Amanhã tem ‘O espelho’ de Tarkovski
ou ‘Viridiana’, de Buñuel.Você escolhe, telespectador!’’.

Um ‘’Big Brother’’ adaptado, em que só entrariam no
confinamento loiras belíssimas com mais de 1,70m , mas com QI superior a
170.Os joguinhos eliminatórios seriam descobrir charadas do tipo ‘’quem
é quem na mitologia nórdica’’.

E, ah,principalmente, o fanatismo religioso seria
substituído por uma ardor estético pagão.A volta de um certo politeísmo,
em que os novos deuses seriam filósofos, poetas,escritores, cineastas,
artistas plásticos, etc.

Tudo isto e muitas coisas mais, claro, em nome da
alegria e do bem estar do povão.Como se alcançaria tudo isto?Evidente,
através da mídia.Sou meio elementar em certas questões metafísicas
complicadas do tipo ‘’quem veio primeiro, o ovo ou a galinha’’ e no
quesito ‘’formação de público de massa’’acredito piamente que quem
define os gostos populares é mesmo a mídia e não a massa.Os galinhões
são os donos de tv e os publicitários e os ovinhos vêem depois e são os
gostos pré fabricados do populacho.Mudando a textura e a cor dos ovos,
estaria tudo resolvido.Bastaria pois a substituição imediata dos donos
da mídia pelas hoje chamadas exceções, ou seja, por renomados poetas,
romancistas, pintores, historiadores, de preferência gente que nada
entende do meio jornalístico e publicitário tal como é realizado hoje.Ou
talvez que tivesse uma vaga noção de manipulação de consciências.Afinal
de contas, para o bem geral e coletivo, tudo é válido, não?Se for para
manipular, que seja por uma causa nobre.Os fins justificam os meios, já
dizia um futuro ídolo do povão dos novos tempos modernos, o craque
Maquiavel.Claro que a mediocridade grassa em demasia também neste meio
das aqui chamadas exceções.Mas ainda acredito que pessoas que
pensam e criam, ainda que pensem e criem mal, têm uma tendência menor a
serem trogloditas que jogadores de futebol e pastores evangélicos.Pelo
menos por enquanto…

Ah, e não, por favor, não me venham com este negócio
politicamente correto de quem determinaria o que é ou não bom gosto e o
que seria determinante na escolha do gosto popular.O grosso do povo não
escolhe nada, come de garfadas o que escolhem para ele.Então, ora pois,
que uns tantos eleitos fizessem as escolhas certas.Os eleitos de hoje
todos sabem quem são e todos também sabem fartamante das escolhas que
são feitas a revelia e a despeito do populacho.Pois voltemos então ao
ideal da república de Platão, em que os poderosos seriam uma espécie de
reis filósofos da mídia(os novos escolhidos, claro, não esta gentalha de
agora) e que ditariam as normas, valores e padrões estéticos de um
povo.Se quiserem , me candidato a imperador.Eu me submeto ao sacrifício
para a felicidade de todos e bem geral da nação.

E pronto, tenho dito, descrevi meu mundo ideal, e dei minhas
respostas fáceis e soluções pragmáticas para a relização deste
Éden.Depois não reclamem que eu só faço falar mal e criticar.


  

2005-03-28 16:17:00

       
  

Usos devidos e indevidos

Há, se é que se pode chamar assim,
um certo nível de cafajestismo inerente a todos nós.Digo no condicional,
porque é preciso ver se o que se chama de cafajestismo se aplica
aqui.Seguinte:típica conversa de moçoilas casadoiras e encantadas com o
pré príncipe encanado ainda em estado de sapo, daquelas que dizem que
estão fartas de serem usadas.Ora, meninas, em verdade vos digo(bíblico
assim mesmo): todos usamos uns aos outros o tempo todo.Não só moçoilas
enamoradas, mas também amigos, parentes, inimigos, etc. Tudo é matéria
de uso para aprimoramento pessoal.Assim também com o amor, que em estado
embrionário nunca é percebido de imediato.Para isto existe o uso
providencial de potenciais amados e amadas, até que possam desabrochar
ou não os affairs trágicos , luxuriosos e epopéicos.Até porque não se
ama à primeira vista o tempo todo.É preciso experimentar, olhar a
embalagem, o recheio e depois provar do remédio para ver se
funciona.Perdoem a falta de poesia e a linguagem meio cafajeste, mas as
coisas são assim mesmo.Tudo e todos são material de uso humano.Eis aí a
potencial cafajestice de cada um.A contínua descoberta de uns por outros
e de outros por uns.

Mas falando de usos amorosos, especificamente.Claro
que uns enfrentam sérios problemas de cegueira e ingenuidade patológica,
e compram sempre e tragicamente gato por lebre.Pobres destes cuja sina é
usar os produtos podres, de validade vencida,  que em vez de
remediar ,  fazem adoecer mais da solidão nossa de cada dia, e da
pior solidão, da solidão acompanhada.Talvez sejam até mais felizes de
uma maneira torta e gostem desta doença(que não é o ‘’pathos’’ de
paixão, mas uma gripe enfadonha, ou mesmo uma tuberculose incurável).Mas
ninguém, nem mesmo os mais atentos estão livres dos efeitos colaterais
de usos devidos e indevidos.Todo mundo de fato faz uso de placebos, de
primeiros usos de primeiros remédios.Todo mundo é cientista e
cobaia ao mesmo tempo.Pulando a linguagem farmacológica, há quem
use e goste de ser usado, há quem é usado e não goste do uso, e há os
que usando, fazem mal ao objeto usado, e há os mal utilizados, que
estragam no primeiro uso.Mas usar, todo mundo usa todo mundo.Até que
apareça aquele grande, rotundo e verdadeiro amor, todos estamos
condenados a um imenso laboratório de testes, sujeitos a passar de mão
em mão, algumas sujas, outras nem tanto, e também a nos desapercebermos
daquelas mãos que melhor poderiam nos manusear.Algum erro de cálculo,
claro, pode ser fatal, assim como algum uso indevido, dependendo do
material usado e de suas vicissitudes e idiossincrasias.

Por tudo isto, gentis moçoilas sonhadoras, é preciso
saber perdoar um certo cafajestismo intrínseco que não é tanto pela
canalhice mas pela natureza humana mesmo, natureza esta que também é
vossa, gentis moçoilas.Vós também usais e abusais de tudo quanto vêem e
de cada amor à primeira vista que tendes(são às vezes tantos,
não?).Aliás, as moçoilas são talvez inconscientemente muito mais cruéis
no uso que os mancebos quando enamorados.Regateiam carícias, fazem
beicinho, dizem nãos povoados de intenções positivas, enfim, jogam um
antigo jogo que elas acreditam imperceptível mas que já tem barbas de
tão velho.E os jovens mancebos, tolos enamorados, caem na velha
armadilha, não porque ingênuos, mas porque afoitos dos tais usos
devidos e indevidos.

Tudo isto é  muito óbvio, mais que elementar, mas ninguém fala
nestas coisas com medo de sujar as mãos ou conspurcar os ouvidos
castos.Mas vez em quando, é bom tirarmos as máscaras um pouquinho, um
tantinho só, só para respirar e depois continuarmos o baile.

  

2005-03-22 22:48:00

       
  

Autofagia

Ave de rapina que se alimenta dos próprios despojos
de seu esboços de certezas e dos furtos da própria carne
tua carne envilecida é o repasto de tua memória
teu sabor é o do hálito de um feto.
 
A escritura é feita no corpo, onde as linhas do tempo se cruzam
com as negativas que contornam teu trajeto.
O tempo escreve o corpo que escreve a mão dos olhos que insistem
em tomar de assalto tudo que vêem percebem intuem
e que não podem tocar.
 
Os olhos vêem para dentro, espelho avesso que reflete
a mesma imagem distorcida de um corpo semi putrefato.
Há o alento permanente de uma eterna decomposição
sempre recomposta pela recomposição de sonhos imateriais.
 
Ave de rapina que se alimenta da própria morte constante
de cada segundo que escapa, de cada momento fugidio,
de cada vida que se esvai de cada perda provisória
pois provisória é cada perda, fracasso, pois provisória
é cada morte.
 
Teus genitas, olhos, boca e mãos reproduzem teus filhos em série,
frutos da tua união contigo mesmo.
Tua reprodução prescinde de parceiros.
Teus filhos são  teus projetos contrafeitos teus murmúrios
desconexos tuas palavras ao vento teus roubos mais íntimos
que cometes contra  ti mesmo.
 
Ave de rapina que vomita tuas verdades indecisas
para novamente sorvê-las
que se alimenta da náusea do contrasenso de viver
e do contrapeso de amar.
 
Abutre patético que insiste na pureza e no vôo do falcão
teu vôo é tua sombra presa aos teus pés
teu alimento é teu próprio cadáver ressuscitado.
 
 

  

2005-03-18 22:50:00

       
  

Contra o trabalho. Em termos.

’’Trabalho ‘’ é um dos conceitos e
vocábulos mais queridinhos da cartilha do politicamente correto.’’O
trabalho enobrece o homem’’, diz o ditado popular; ‘’ganharás o pão com o
suor do teu rosto’’, reza a bíblia, embora a mesma bíblia se pergunte
em outra parte ‘’que proveito tira o homem debaixo do trabalho com que
se afadiga sob o sol’’.Como gostam os politicamente corretos, o conceito
de trabalho é tão vasto e amplo que pode-se aplicá-lo em qualquer
circunstância, preferencialmente aquela mais clicheresca, onde se pode
encobrir a falta de pensamento com qualquer uma das frases acima
apresentadas.Ora,trabalho não enobrece ninguém, porque trabalho, seja
ele qual for, está longe de ser uma atividade nobre.Nobres gostam mesmo é
de ociosidade.

Mas todos nós, até os vagabundos sociais,
trabalhamos, sem exceção.O pleno ócio é impossível.Afinal de contas,
tudo é trabalho.Acordar dá trabalho, comer idem.Sexo dá trabalho.Viver é
de uma trabalheira quase insuportável.Nenhum trabalho, por mais
agradável que seja( e a maioria não é. Ao contrário) chega a ser
plenamente gratificante e prazeiroso.Todos cansam.Viver cansa.Trabalho é
tortura.Sim, tortura mesmo.A palavra ‘’trabalho’’ vem de ‘’tripalho’’
que era um instrumento de tortura feito de três paus.Todos trabalham
porque ,como mandou São Paulo, quem não trabalha não come.Mas daí a ter
prazer demais com o trabalho chega a ser coisa de pervertidos mesmo.Até
amar dá um trabalho danado, que exaure.Bom mesmo é ser amado.E amar
um pouquinho só, para não ter perigo de se viciar na coisa e se tornar
dependente desta árdua tarefa que é amar alguém.Por isto, o tripalho,
digo, a cruz de Cristo foi tão pesada.O Homem se deu o trabalho de amar a
humanidade inteira.Vejam a trabalheira que deu e o que Ele recebeu em
troca.

Se, metafisicamente, trabalhar já é complicado, no
sentido social, ninguém gosta de trabalhar.A preguiça é a condição
primária de todo ser humano.Nascemos para a cama, para o bem desfrutar
as horas e dias com contemplação.Trabalho social é condição de
indústria, de mercado.Sim, há esta história da carochinha que contam,
que diz que trabalhando , você está ajudando seu próximo, e que outro
estaria ajudando você, criando assim uma grande engrenagem de trabalho
comunitário.Balela.Isto está mais próximo de anarquismo utópico(Perdoem o
pleonasmo) do que de capitalismo, em que seu trabalho é seu valor de
mercado, em que você vale e pesa o quanto faz aos olhos do empregador
que desfruta das benesses da sua chamada força de trabalho.Trabalho em
capitalismo é exploração do mais fraco pelo mais forte.Neste sentido, os
maiores trabalhadores, ou melhor, os maiores torturados são os
empregados, que oferecem os maiores dividendos do nobre suor de seu
trabalho para seus também nobres patrões trabalhadores.Pena que os
frutos desta nobreza sejam tão mal repartidos , não?

Nada de marxismo xiita por aqui.Tenho horror a
comunismo, em que seriam nivelados funkeiros e
escritores.Ninguém é igual a ninguém e, a bem do meu interesse próprio,
acredito que escritores tenham privilégios maiores que funkeiros.Por uma
questão metafísica, muito mais que
sócio-econômica.Aliás,a dinâmica do trabalho social não é só
econômica, mas religiosa também.Reparem como católicos trabalham menos
que protestantes.Para estes últimos, o lucro é uma dádiva divina,
oriunda dos céus, que cobre de glórias aquele que muito trabalhou.Nada
melhor para os nobres senhores donos do capital, que observam todas
estas ovelhas trabalhando como burros em busca de se tornarem pastores,
como eles, bons nobres capitalistas.Assim nasceu a prosperidade dos
Estados Unidos, aliás.Já os católicos são essencialmente contemplativos,
ou seja, essencialmente preguiçosos e vagabundos.Sempre esperam um
milagre dos céus ou um dinheirinho aqui na esquina, ou talvez, quem
sabe, ganhar na loteria.Ah, os católicos não muito
praticantes sonham também em levar unzinho por fora .Assim se
fundou a nação brasileira e seu subdesenvolvimento trabalhista.

No Brasil, trabalho é trabalho braçal.Experimente dizer que escreve
ou que dá aulas, e ouvirá um inexorável ‘’e em que você trabalha?’’.E
aqui, mais uma vez, advogo em causa própria.Ora, pensar dá trabalho.E
muito.Escrever mais ainda.Quantos pensam direitinho e enfileram as
frases de modo a ter um certo ritmo, uma certa consistência de idéias?
No Brasil, e em qualquer sociedade capitalista, trabalho é trabalho
pragmático, de utilidade direta, sem nuanças.Pensar dá trabalho, mas nem
sempre o fruto deste trabalho é direta, imediata e objetivamente
aproveitado pelo cidadão trabalhador ao seu lado.Na engrenagem
trabalhista capitalista, pensar é um trabalho mal remunerado e, ainda
por cima,perigoso.Pensar pode atrapalhar o trabalho cuidadoso de
milênios de alguns nobres trabalhadores que, digamos assim, acreditam
por demais na força de seu trabalho, principalmente na dos outros…Não
há quem queira ser patrão de poetas e filósofos. Felizmente, estes
são(em tese, em tese…) autônomos, embora geralmente ganhem muito pouco
ou quase nada com o ‘’suor do rosto e o trabalho com que se
afadigam sob o sol’’.


  

2005-03-16 00:13:00

       
  

A trágica falta da tragédia

A tragédia do  pós
modernismo é a falta de tragédia.Acreditem, tragédia é salutar para
a humanidade.Realisticamente é inexorável:nos faz baixar a bola, nos
lembrando de nossa fragilidade extrema; artisticamente
é indispensável.Os gregos estavam certíssimos.Tragédia expurga os
demônios pessoais e coletivos, e acalenta os temperamentos
intempestivos, proclamando a todos que a desgraça vêm a galope e
espreita cada um.Vai daí um certo sadomasoquismo em ver encenada a
tragédia de outros que é o reflexo antevisto, contemporâneo ou póstumo
da nossa.Mas, ora bolas, arte no fundo é isto mesmo:sadomasoquismo
sofisticado.O que de certa forma explica o sucesso de filmes de terror.A
obra de terror é uma espécie de arte trágica para os gostos menos
refinados.

O pós modernismo deslocou a tragédia para dentro,
tornou-a silenciosa, introjetada.Picasso viveu de pintar seus sucessos
amorosos e sexuais.Joyce adaptou a Odisséia de Homero para um dia na
vida de um cornudo, Proust fez seu personagem demorar vinte páginas para
levantar da cama e , pasmem, Beckett escreveu um romance inteiro em que
o personagem não sai da cama.Ou seja, o pós modernismo se encheu da
dicotomia entre bem e mal e trouxe os demônios humanos(peste, destino,
desgraça, assassinato, morte, etc) para dentro dos próprios personagens,
criando uma fauna inteira de pacientes de divã que adornam as páginas
da literatura e dos quadros cubistas.Freud deve vibrar no túmulo
sabendo-se o pai de toda a arte que nasceu depois dele.Freud, quem
diria(eu digo, ora), um cientista rigoroso, acabou se tornando o maior
ponto referencial da arte pós moderna.

Até aí tudo mais ou menos bem.Mas a partir do momento
em que se traz o foco da tragédia humana para dentro de uma pessoa,
acontece o óbvio.O que era tragédia começa a soar como neurose de
dondoca.A tragédia então torna-se blasé,minimalista demais .Daí
então começam a aparecer coisas esquisitas como o pop, que é a própria
negação da tragédia, uma consequência do cansaço e do esgotamento do pós
modernismo.O mais emblemático da falta da tragédia de nossa era é o
‘’trágico’’ pop, que celebra tudo e qualquer coisa como sendo parte do
contexto, ainda que não haja contexto.Confuso?Pois é, a tragédia é essa
confusão mesma.A falta de referências de bem e de mal, de claro e escuro
, de vida e de morte que, bem ou mal, sempre nortearam as pessoas.Hoje,
tudo é nuança, tudo é relativo e tudo depende do contexto.Parece que a
vida se tornou uma espécie de estudo antropológico que não se imiscui em
juízos de valor.

Não é nada assim.Bem e mal continuam existindo,
apesar de serem menos perceptíveis a olho nu.E alguns elementos trágicos
da vida ainda são tão antigos e ainda tão atuais quanto as
tragédias gregas , assim como a morte, o amor não correspondido, a
injustiça social, a inveja, a mesquinharia, a crueldade, etc,etc.Por
mais que o pós modernismo introjete tudo isto para dentro, todos estes
elementos citados ainda têm consequências externas e que incidem
diretamente na vida das pessoas.As tragédias começam por dentro mas seus
efeitos são e sempre serão inexoravelmente externos.

O problema é que ”trágico” hoje, quer seja
interno ou externo, está se tornando produto embalado a ser
degustado por consumidores, isto quando não desaparece por
completo.Reparem:uma tragédia mostrada na televisão(seriados,
novelas, programas de auditório, etc) sempre é Kitsch, cafonérrima e
inverossímil, como que uma paródia (mal feita) do trágico em si,
desmistificando a verdadeira tragédia das pessoas.A maior parte da
música e do cinema atual vão ainda mais fundo no fundo do poço:não
contém elementos de tragicidade quase, são celebrações vazias de
sentimentos banais.Celebram no fundo a ausência ,a morte da arte.Ora, o
fundamento da arte é a tragédia.Sem contraste, sem conflito,sem
sofrimento, não há arte, há apenas entretenimento.E trágico mesmo é
observar a arte se tranformar paulatinamente em diversão oca e
vazia.

Arte e tragédia(que são, repito, intrinsecamente
ligadas) são necessidades humanas vitais.E, na
verdade, não evoluem.Podem mudar de roupa de acordo com os
tempos, sair de fora para dentro, como fizeram os pós modernos, mas o
elemento trágico está sempre lá, em qualquer contexto histórico , social
ou estético.A base de toda arte e , por conseguinte, de toda
a tragédia, é a dor humana. Mesmo o riso irônico e sarcástico da
comédia no fundo é uma tragédia às avessas, mas ainda assim tragédia.O
perigo é tudo isto virar mera celebração, mero objeto de consumo para um
público pagante.Sei que os tempos são vazios e a tragédia maior é
esta:a tragédia do oco.Mas isto não é coisa para se celebrar em
programas de tv ou seriadinhos americanos.Hoje em dia, mais do que
nunca, é preciso ser trágico,quase canastrão mesmo(mas com estilo,
claro) para enfrentar este marasmo blasé que ameaça anular os
sentimentos humanos.


  

2005-03-11 21:31:00

       
  

Autismo utópico

Aninho meus vazios como quem embala uma criança morta.

Acaricio a placenta das minhas ausências, dos meus hiatos,

das minhas horas desperdiçadas.

Edifico as paredes que me cercam com entulho prenhe

de silêncio fértil e ensurdecedor.

Fora, vozes estrepitosas remontam sons  de sentidos póstumos.

 

A ausência dos móveis decora o branco da memória abandonada

(inúteis os utensílios quando se perde o gosto do palpável).

As vísceras adornam o corpo da sala pelo lado de fora.

Dentro, o cheiro de ar puro que exala de um crânio oco.

 

Tempo não há, apenas a lembrança constante do instante seguinte.

O teto me ampara, o chão me delimita.

As paredes esquadrinham tacitamente

a compreensão do confinamento consentido

A gravidade atua para o centro de si mesmo

causa confortável da paralisia dos móveis ausentes.

 

Um único habitante.

uma única vida

em estado permanentemente embrionário.

 

Ainda assim, decoração e construção não se completam.

 

  

2005-03-08 22:19:00

       
  

A cara nacional

Leio aparvalhado um artigo de uma
célebre revista cultural em que intelectuais e artistas elegem o funk
carioca como a mais recente revolução cultural do país.Leio de novo.E
não, não é fruto de alucinação ou sintoma de esquizofrenia.É fato, a
coisa foi realmente escrita, e está lá em letras garrafais:o funk
carioca, aquele mesmo do ‘’bonde do tigrão’’, e de outras preciosidades,
a mais nova revolução cultural do país.Seria de se espantar,de rir a
gargalhadas, se não fosse uma prática mais que constante da chamada
intelligentsia nacional.

Há muito que se mascara a flagrante decadência
cultural e artística do país com artifícios politicamente corretos como o
de eleger bobagens popularescas como sendo autêntica representação das
raízes e da arte do povo brasileiro.O que não deixa de ser verdade.De
fato, o tal funk carioca é representativo do povão, e representa tudo o
que há de pior, de mais podre e vulgar que há no povão;uma autêntica
representação de uma mandrágora, ou das raízes de um pé de
funcho.Os instintos básicos e mal cheirosos da massa.E agora elevados à
condição de manifestação artística revolucionária pela
intelectualidade.Revolução de que, eu pergunto?A humanidade agora seria
salva por uns tantos glúteos superdesenvolvidos e cantores desdentados
com cara de tarado?A cara revolucionária brasileira seria a bunda das
mulatas e de loiras tingidas?

Se sim, então poderia se dizer que o pensamento desta
‘’intelligentsia’’ brasileira seria a flatulência nacional, que espelha
com louvor as manifestações mais recônditas do caráter nacional, as da
bunda.Mas flatulência é uma palavra aristocrata que não combina com a
verdadeira linguagem do povão, então digamos mesmo que o pensamento
brasileiro é um grande peido sofisticado, oriundo dos intestinos da
nação.

Há uns bons anos, grande parte desta
intelectualidade, especialmente a do meio artístico, parece pedir
desculpas ao populacho pelas desigualdades sociais toda vez que abre a
boca.Ora, isto seria função de políticos, muito mais que de artistas e
intelectuais.A segregação popular é fruto de injustiça social.Esta regra
crescente de celebrar o pior desta cultura popularesca com um eterno
pedido de desculpas é a mais flagrantre manifestação da atrofia da arte e
do pensamento.A arte nasce da exceção, não é manifestação de tribos ou
tradições, sejam elas populares ou aristocratas.A burrice, o mau gosto, a
vulgaridade não têm origem sócio-econômica e são distribuídos
democraticamente a todos os grupos e pela maioria das pessoas.

Em nada contribui passar a mão na cabecinha do
populacho como se este fosse um artista em potencial ávido por expressão
e voz.Sou pela segregação do mau gosto.Direito à voz todo mundo tem ou
deveria ter, mas apologia à esculhambação em forma de estudo
sócio-artístico-antropológico do funk carioca é dose.Contra esta prisão
de ventre calcada pelas diferenças sociais no Brasil, alguns artistas e
intelectuais sugerem o uso de supositório social que descarrega a livre
maifestação dos anseios populares, provocando uma desinteria
catastrófica, cuja ‘’matéria prima’’ é a suposta arte das massas, como o
funk carioca e subgêneros.

Não creio que a apologia do mau gosto seja característica exclusiva
da nossa cultura tupiniquim.Mediocridade grassa em qualquer canto do
planeta.Mas creio que traduzir os ideais de liberdade , igualdade e
fraternidade para libertinagem, suruba e vulgaridade é virtude exclusiva
da mente pensante brasileira.E isto tudo com veio artístico e coisa e
tal.Pura e autêntica manifestação da célebre face da nação, da aqui já
citada cara nacional.E que cara.

  

2005-03-04 22:16:00

       
  

Quem ou o quê representa o quê ou quem?

Nada contra fetiches.Principalmente
no quesito sexual, onde tenho algumas simpatias fetichistas amenas.As
pessoas precisam de símbolos, de prestar culto a qualquer coisa que
seja, senão enlouqueceriam.Alguma coisa deve simbolizar algo que faça
sentido, que transcenda e que nos dê algum chão no meio do caos de nossa
singela existência.Ainda que o objeto simbolizado não exista ou seja
imaginação torta de uns e outros, o que acontece na imensa maioria dos
casos.

Mas acontece que os símbolos e fetichismos quase
sempre extrapolam.Tenho a impressão que há mais símbolos que objetos
simbolizados.Toda vez, por exemplo, que vejo um religioso empunhando uma
bíblia como se fosse uma espada, tenho vontade de sair correndo de
medo.Me lembra as cruzadas da idade média, quando  decepavam
cabeças em nome do amor divino.Aliás, as religiões são campeãs de
fetichismo.Desde o catolicismo até o candomblé, os fiéis parecem adorar
mais os objetos palpáveis, imagens, santinhos, cruzes, escapulários, que
o próprio divino em si.É compreensível.Difícil para o populacho se
apegar a meros sentimentos nobres e puros de transcendência.O povão
precisa se agarrar em alguma coisa que dê para tocar.Só espero que as
bíblias não sejam muito afiadas.

Mas seria covardia eu delimitar esta minha singela
metáfora(outro símbolo, outro fetiche…) à religião.Vejam só, no nosso
mundinho moderno, pouquíssimas coisas existem de fato.Quase tudo é
símbolo e representação.Nossa estimada democracia representativa, por
exemplo.Temos pessoas no governo que nos representam através do voto,
que representam o poder soberano e a vontade do povo.Na tese, fica assim
bonitinho, mas basta dar uma olhadinha na cara dos deputados e de
alguns membros do executivo para perceber que esta representação não é
exatamente um espelho( pelo menos, não o meu).Os poderes executivos,
legislativo e judiciário representam(mais uma representação) uma espécie
de fetiche às avessas, em que odiamos sermos representados
por estes que nós mesmos elegemos.Nada mais sutilmente esquizofrênico.

Esquizofrenia?Claro que sim, mas há que ser
esquizofrênico em um mundinho esquizofrênico por definição.Ora, se não
há um todo a ser visto, então há que se tomar a parte pelo todo, a
representação pelo representado, ainda que se odeie a representação,
como acontece com o governo.Precisamos de símbolos, na verdade, pela
falta de elementos concretos.Tem gente, por exemplo , que adora pés
femininos,sapatos femininos, seios, orelhas, etc. Alguns até adoram mais
estes pequenos detalhes anatômicos que o todo de uma mulher.Poder-se-ia
argumentar que uma mulher é um elemento concreto, mas há controvérsias
sobre o assunto…

Mas continuando, tudo é símbolo mesmo.De fato,e fatos
não existem isolados e sem contexto(ou seja, fatos são símbolos
também), tudo é representação, como este texto mesmo é a representação
de um esboço de pensamento mal organizado de um autor virtual, que
existe como símbolo(bom ou mau) na cabeça dos que o lêem, como são
símbolos estas letras enfileiradas que produzem um fraseado
representativo daquilo que se intui, ou mesmo do que se percebe por
instinto.A palavra talvez seja o símbolo mais básico, primitivo e
rudimentar do ser humano.Na ânsia de se comunicar, de arrumar comida e
de fazer sexo que não fosse a base do tacape, os pré-históricos criaram a
palavra para facilitar a vida.Resolveram alguns problemas, mas outros
foram criados.Com a palavra, veio a metafísica, a filosofia, estes modos
obtusos de encaminhar a palavra, e até a poesia, que é uma espécie de
meta-palavra, de meta-linguagem, uma negação do discurso pragmático.Ou
seja, tinha que dar nesta embrólio mesmo.Talvez fosse até mais prudente
que a palavra não fosse inventada, que os únicos problemas do ser humano
fossem como arrumar comida e sexo fácil.É mais ou menos o que Rousseau
queria, o retorno ao bom selvagem, mas, infelizmente, já estamos muito
civilizados para conquistar uma moça na base da cacetada.

E ficamos todos assim mesmo, criando mais símbolos(para divertimento e
alegria dos semiólogos), mais fetiches, mais problematizações de
problemas criados, fetichizando a própria vida, impondo vários sentidos a
um universo indiferente e impassível diante do esforço humano de teimar
em fazer e dar sentido.

  

2005-03-01 21:43:00

       
  

Declaração de amor

Prazer em receber teus beijos estéreis, tuas mentiras escamadas

teus lugares comuns que revelam verdades viáveis

que duram pela brevidade eterna da tua presença

teus esboços de certezas concretas

que delineam teu, o nosso caráter sutil e desencorpado

 

Prazer  em abrir corpo e ouvidos para as tuas ordens

infantis de adulta mimada, general que impõe as estratégias de uma criança

que conquistou sua autoridade pelos caprichos do corpo,

pela curva dos quadris

pela angulação torta do pensamento

por descaminhos reveladores de tua superfície mais oculta

abonadora de tuas virtudes disfarçadas de vícios cativantes

 

Na melodia das dissonâncias da tua voz, o prazer imediato da curva que 

não te define, da linha oblíqua que oferece o caminho torto que não te alcança

e que deslumbra os transeuntes que topam com tua natureza morta, sempre

ressuscitada pela autópsia de corpos retos, elementares,

mortos pelas tuas tangências