A trágica falta da tragédia
A tragédia do pós
modernismo é a falta de tragédia.Acreditem, tragédia é salutar para
a humanidade.Realisticamente é inexorável:nos faz baixar a bola, nos
lembrando de nossa fragilidade extrema; artisticamente
é indispensável.Os gregos estavam certíssimos.Tragédia expurga os
demônios pessoais e coletivos, e acalenta os temperamentos
intempestivos, proclamando a todos que a desgraça vêm a galope e
espreita cada um.Vai daí um certo sadomasoquismo em ver encenada a
tragédia de outros que é o reflexo antevisto, contemporâneo ou póstumo
da nossa.Mas, ora bolas, arte no fundo é isto mesmo:sadomasoquismo
sofisticado.O que de certa forma explica o sucesso de filmes de terror.A
obra de terror é uma espécie de arte trágica para os gostos menos
refinados.
O pós modernismo deslocou a tragédia para dentro,
tornou-a silenciosa, introjetada.Picasso viveu de pintar seus sucessos
amorosos e sexuais.Joyce adaptou a Odisséia de Homero para um dia na
vida de um cornudo, Proust fez seu personagem demorar vinte páginas para
levantar da cama e , pasmem, Beckett escreveu um romance inteiro em que
o personagem não sai da cama.Ou seja, o pós modernismo se encheu da
dicotomia entre bem e mal e trouxe os demônios humanos(peste, destino,
desgraça, assassinato, morte, etc) para dentro dos próprios personagens,
criando uma fauna inteira de pacientes de divã que adornam as páginas
da literatura e dos quadros cubistas.Freud deve vibrar no túmulo
sabendo-se o pai de toda a arte que nasceu depois dele.Freud, quem
diria(eu digo, ora), um cientista rigoroso, acabou se tornando o maior
ponto referencial da arte pós moderna.
Até aí tudo mais ou menos bem.Mas a partir do momento
em que se traz o foco da tragédia humana para dentro de uma pessoa,
acontece o óbvio.O que era tragédia começa a soar como neurose de
dondoca.A tragédia então torna-se blasé,minimalista demais .Daí
então começam a aparecer coisas esquisitas como o pop, que é a própria
negação da tragédia, uma consequência do cansaço e do esgotamento do pós
modernismo.O mais emblemático da falta da tragédia de nossa era é o
‘’trágico’’ pop, que celebra tudo e qualquer coisa como sendo parte do
contexto, ainda que não haja contexto.Confuso?Pois é, a tragédia é essa
confusão mesma.A falta de referências de bem e de mal, de claro e escuro
, de vida e de morte que, bem ou mal, sempre nortearam as pessoas.Hoje,
tudo é nuança, tudo é relativo e tudo depende do contexto.Parece que a
vida se tornou uma espécie de estudo antropológico que não se imiscui em
juízos de valor.
Não é nada assim.Bem e mal continuam existindo,
apesar de serem menos perceptíveis a olho nu.E alguns elementos trágicos
da vida ainda são tão antigos e ainda tão atuais quanto as
tragédias gregas , assim como a morte, o amor não correspondido, a
injustiça social, a inveja, a mesquinharia, a crueldade, etc,etc.Por
mais que o pós modernismo introjete tudo isto para dentro, todos estes
elementos citados ainda têm consequências externas e que incidem
diretamente na vida das pessoas.As tragédias começam por dentro mas seus
efeitos são e sempre serão inexoravelmente externos.
O problema é que ”trágico” hoje, quer seja
interno ou externo, está se tornando produto embalado a ser
degustado por consumidores, isto quando não desaparece por
completo.Reparem:uma tragédia mostrada na televisão(seriados,
novelas, programas de auditório, etc) sempre é Kitsch, cafonérrima e
inverossímil, como que uma paródia (mal feita) do trágico em si,
desmistificando a verdadeira tragédia das pessoas.A maior parte da
música e do cinema atual vão ainda mais fundo no fundo do poço:não
contém elementos de tragicidade quase, são celebrações vazias de
sentimentos banais.Celebram no fundo a ausência ,a morte da arte.Ora, o
fundamento da arte é a tragédia.Sem contraste, sem conflito,sem
sofrimento, não há arte, há apenas entretenimento.E trágico mesmo é
observar a arte se tranformar paulatinamente em diversão oca e
vazia.
Arte e tragédia(que são, repito, intrinsecamente
ligadas) são necessidades humanas vitais.E, na
verdade, não evoluem.Podem mudar de roupa de acordo com os
tempos, sair de fora para dentro, como fizeram os pós modernos, mas o
elemento trágico está sempre lá, em qualquer contexto histórico , social
ou estético.A base de toda arte e , por conseguinte, de toda
a tragédia, é a dor humana. Mesmo o riso irônico e sarcástico da
comédia no fundo é uma tragédia às avessas, mas ainda assim tragédia.O
perigo é tudo isto virar mera celebração, mero objeto de consumo para um
público pagante.Sei que os tempos são vazios e a tragédia maior é
esta:a tragédia do oco.Mas isto não é coisa para se celebrar em
programas de tv ou seriadinhos americanos.Hoje em dia, mais do que
nunca, é preciso ser trágico,quase canastrão mesmo(mas com estilo,
claro) para enfrentar este marasmo blasé que ameaça anular os
sentimentos humanos.