2005-03-22 22:48:00

       
  

Autofagia

Ave de rapina que se alimenta dos próprios despojos
de seu esboços de certezas e dos furtos da própria carne
tua carne envilecida é o repasto de tua memória
teu sabor é o do hálito de um feto.
 
A escritura é feita no corpo, onde as linhas do tempo se cruzam
com as negativas que contornam teu trajeto.
O tempo escreve o corpo que escreve a mão dos olhos que insistem
em tomar de assalto tudo que vêem percebem intuem
e que não podem tocar.
 
Os olhos vêem para dentro, espelho avesso que reflete
a mesma imagem distorcida de um corpo semi putrefato.
Há o alento permanente de uma eterna decomposição
sempre recomposta pela recomposição de sonhos imateriais.
 
Ave de rapina que se alimenta da própria morte constante
de cada segundo que escapa, de cada momento fugidio,
de cada vida que se esvai de cada perda provisória
pois provisória é cada perda, fracasso, pois provisória
é cada morte.
 
Teus genitas, olhos, boca e mãos reproduzem teus filhos em série,
frutos da tua união contigo mesmo.
Tua reprodução prescinde de parceiros.
Teus filhos são  teus projetos contrafeitos teus murmúrios
desconexos tuas palavras ao vento teus roubos mais íntimos
que cometes contra  ti mesmo.
 
Ave de rapina que vomita tuas verdades indecisas
para novamente sorvê-las
que se alimenta da náusea do contrasenso de viver
e do contrapeso de amar.
 
Abutre patético que insiste na pureza e no vôo do falcão
teu vôo é tua sombra presa aos teus pés
teu alimento é teu próprio cadáver ressuscitado.
 
 

  

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