2005-04-30 13:29:00

       
  

Quase otimismo

O mundo progride e a vida melhora a
cada dia.Assustados?Não, não é mensagem de auto ajuda ou nenhum alento
do tipo.Apenas uma constatação óbvia dos fatos.A vida é bem melhor agora
que há cem anos, não?Não há escravidão, existem leis que inibem a
exploração no trabalho, o lazer melhorou, tornou-se mais diversificado e
acessível.Temos televisão, cinema,mais liberdade sexual, entrega de
Pizza e o diabo a quatro.Lógico que há nuanças obscurantistas e as
coisas sempre têm um lado sinistro oculto ou escancarado mesmo( a
maioria, aliás).Mas que as coisas melhoraram e continuam melhorando, não
há sombra de dúvida.Inclusive as perfídias e corrupções estão cada vez
mais difíceis de serem arranjadas, dada a ‘’falta de privacidade’’
gerada pela mídia.Enfim, duvido que o mais pessimista dos seres fosse
querer regressar no tempo.Uma visitinha à idade média ou à segunda
guerra mundial? Quem se habilitaria?

Do ponto de vista social , as coisas sempre melhoram e
continuam melhorando, como se houvesse uma ordem natural nesta
melhora.E há.O darwinismo estava corretíssimo.Aos trancos e solavancos,
as coisas vão se arranjando, tomando rumo.Mais duzentos anos de processo
evolutivo e estaremos todos rindo à toa, como os americanos já fazem
hoje em dia…

Mas vejam só, falo do ponto de vista social,
coletivo.O indivíduo não melhora nem que a vaca tussa.Simplesmente toma
mais consciência de sua hediondez e tenta fazer uma forcinha para
varrê-la para debaixo do tapete.A evolução social vem desta constatação
de que ninguém , individualmente, vale nada.Paradoxalmente, o gênio
humano vem exclusivamente do indivíduo.De uns poucos, de uns
pouquíssimos mesmo.Só o indivíduo produz arte, pensamento original. O
gênio individual pensa a mesquinharia humana e o séquito, o rebanho
corre atrás depois da tomada de consciência geral.Daí brota-se uma certa
generosidade para compensar alguns desacertos.Mais alguns séculos deste
processo e quem sabe a coisa vai?

A ‘’coisa’’, no caso, pode até melhorar bastante materialmente, mas
não pensem em um futuro edênico de delícias inenarráveis.Por mais que a
sociedade possa evoluir, o ego humano sempre será maior que qualquer
evolução.Até a generosidade do gênio, que descobre os podres da maçã,
tem uma certa perversidade intrínseca, uma vaidade latente que, por si
só, já é uma ameaça a qualquer organização coletiva.Amar é difícil, e
desta dificuldade nascem todos os problemas humanos.Mas amar a si
próprio é facílimo, ainda mais quando se tem certo talento, por mínimo
que seja.Este estado de coisas, este embrólio nunca cessará.A condição
humana é precária, tanto do ponto de vista físico quanto psicológico.Por
mais bem estar social que exista, como se resolverá a morte, o amor não
correspondido, a dor de perdas definitivas que nem mesmo em uma Suécia
super desenvolvida não melhora, não sara? Nosso destino fatal é a
desgraça, meus caros quase otimistas.Não há escapatória.E outra, um
estado de felicidade plena deve gerar um tédio tão grande que o número
de suicídios aumentará avassaladoramente.O ser humano é esquisito, quer
sempre mais, quanto mais quer, mais deseja, quanto mais problemas
resolve, mais problemas inventa.Está aí a psicanálise que foi criada
para resolver problemas pós modernos que nunca nos demos conta…Enfim,
senhores quase otimistas, a capacidade humana de criar sofrimento é
infinita.Maior mesmo que a evolução social.


  

2005-04-26 20:53:00

       
  

Pathos

Fabrico paulatinamente um câncer de estimação
formado por fracassos, tropeços e desenganos
Sua metástase toma a forma de um placebo
que cura todas as verdades
 
O tempo destrói as doenças tergiversantes
e imprime a saúde falaciosa de um moribundo feliz
Meu câncer saboreia uma morte insidiosa
que desabona sorrisos afáveis e conciliadores
e retoma o contato de uma negativa permanente
de um gesto reprimido
 
Minha cura é minha doença deliberada
que incide sobre todos os consolos inúteis
sobre todas as crenças fatigadas
sobre todas as tentativas destroçadas
 
Meu câncer corrói as entranhas de um castelo de areia
e revela a arquitetura de uma destruição
planejada por construtores de apelos fáceis
 
Gozo de uma tpacita podridão interna
que cumprirá uma terna elegia
ao primeiro verme que se debruçar
sobre um corpo já sem vida
que ainda repousa em movimento inútil
 
Meu câncer fecundará minha saúde estéril.

  

2005-04-23 11:58:00

       
  

Compota de papa em conserva

Mal foi eleito papa, Ratzinger já
angaria antipatias por todos os lados pelo seu suposto
conservadorismo.São tantos os ataques vindos de gente tão esquisita e
suspeita que eu já sinto simpatia pelo homem.Primeiramente, me faz rir a
expectativa de uma visão moderna em uma instituição milenar que prega a
existência de anjos e demônios.Por mais que a igreja se imiscua em
assuntos terrenos,seu território é o além.E Deus, que eu saiba, não se
modernizou desde o novo testamento, preferindo a eternidade à
modernidade, o que faz Ele muito bem.Certos modernismos são tão
enfadonhos e voláteis quanto algumas vanguardas que não duram o espaço
de uma geração boboca.

Mas voltando:minha simpatia por Ratzinger reside
justamente em alguns pontos em que ele é severamente criticado.O homem é
acusado de não ter carisma.Ora, para que serve carisma?O conceito é tão
vago e disperso que cabe em qualquer contexto fajuto.Sempre que me
falam em carisma, lembro de Lula falando sandices e sendo aplaudido por
uma multidão comendo farinha com rapadura, ou de um Elvis Presley gordo
vestindo macacões tenebrosos requebrando para uma platéia de
patetas.Carisma já é uma arma perigosa na mão de líderes políticos, que
dirá na figura de um líder espiritual, que tem o poder de inventar o que
quiser basendo-se em quimeras teológicas.Pelo menos o sujeito leva a
sério sua crença em uma verdade absoluta e, por mais que possa estar
equivocado, age de acordo com regras estritas e não prestando culto à
sua própria personalidade.O perigo de um papa carismático é ele achar
que pode usurpar o trono de seu chefe maior, o tal Todo-poderoso que
reina nos céus…

Dizem também que o papa odeia Rock e música Pop.Acha
que são apelos à uma espécie de adoração coletiva que rivaliza com a
adoração religiosa a Deus.Podem argumentar que qualquer tipo de adoração
é pueril e ridícula, mas ao menos a adoração a Deus reside em uma
filosofia que, apesar dos tropeços, reside em uma idéia de amor.E, cá
entre nós, prefiro uma adoração com uma liturgia que entrem Bach e
Vivaldi a ter que adorar cabeludos tatuados grunhindo e se
esguelando.Esquecendo o lado psicossocial da coisa, o lado estético da
igreja católica ganha de longe do universinho medíocre do pop.Ponto para
o bom gosto de Bento 16.

Ratzinger também odeia o relativismo, e acredita em
uma verdade una.Se vai conversar ou não com outras correntes filosóficas
e religiosas que não a dele, é por pura ‘’misericórdia’’ daqueles que
considera ignorantes na fé e no pensamento.E aqui tenho que confessar
que tenho certa inveja desta sua arrogância quase casta.O homem
realmente acredita que exista uma verdade, entendem?Coisa que não
consigo fazer desde os meus seis anos de idade, quando descobri que
papai Noel não existia.Ratzinger me remete a uma saudade epifânica do
consolo da existência de uma verdade absoluta, daquelas que se
podem tocar e tudo.E mais:Bento 16 dá uma banana ao relativismo
antropológico que reina na mediocridade pensante das universidades.Como
posso não gostar dele?Me sinto quase como um filho que não concorda com o
pai, mas endossa todas as suas atitudes.Papai Ratzinger,papai bentinho.
Meu santo padre, que mesmo podendo estar absolutamente errado, me
convence pelo comportamento digno e probo.

Ratzinger é um papa anti pós moderno e só por isto já
é um ídolo para mim, ainda que pregue a estagnação do tempo em uma
eterna idade média(ninguém é perfeito, ué).Não me interessam coisas como
a ordenação de mulheres, voto de castidade, eleição de bispos e
cardeais, que isto é assunto e picuinha interna da igreja.Eles que se
entendam.Estes padrecos que criticam Ratzinger na verdade querem que ele
reforme a vida deles, padrecos querendo uma fatia do poder.Outros
assuntos como uso ou não de camisinha, pesquisa de células tronco não
são da competência da Igreja, e acredito que Ratzinger saiba disto,
embora não possa dizê-lo abertamente.Sexo, ciência não são o forte dos
clérigos. A Igreja se mete nestas coisas de intrometida que é e
sempre julga mal, vasculhando, pensando e inquirindo errado.Galileu
Galilei que o diga, que sofreu o diabo por afirmar aos bispos que a
terra era redonda…Aliás, desconfiam de Ratzinger por ele, a grosso
modo, ter sido um inquisidor da Igreja Ora, mas hoje a Igreja não queima
mais ninguém, no máximo manda calar a boca de alguns marxistas de
batina.

Na verdade, a Igreja tem que cuidar de assuntos do além, ainda que o
próprio Cristo tenha dito que o reino dos céus é aqui mesmo( o inferno
também, digo eu).Mas Este sabia mais das coisas que Ratzinger e de todos
aqueles que se proclamam cristãos, mas não entenderam bem o espírito da
coisa.

  

2005-04-18 19:53:00

       
  

Tempo

Reza a bíblia que há tempo para tudo
na vida.Erro crasso.A grande tragédia humana é a falta de tempo e o
tempo desperdiçado por ingenuidade e ignorância.E também as não
correspondências temporais.Quando se percebe o tempo perdido, quase
sempre já é tarde demais.Nunca tomamos as decisões certas no momento
certo.Em geral, só depois de quebrarmos a cara é que percebemos os erros
do passado.A sabedoria póstuma é sempre no máximo um remendo, uma
tentativa patética de contornar perdas pretéritas que não se transformam
em ganhos em um presente em que abrimos os olhos.As vistas podem já
estar cansadas depois de muito olhar para o chão e não enxergar o
caminho.

Deixando o nariz de cera metafísico(mas
necessário):assim com tudo na vida, desde exemplos íntimos até as mais
rocambolescas tragédias.Ama-se errado uma vez e lá se vão anos perdidos
que não retormam mais;empresta-se dinheiro a um suposto bom amigo e lá
se vão rendas e anos de labuta na conta de um mal caráter.O tempo ,
senhores, é o grande inimigo dos puros, ingênuos e cegos de coração,
daqueles que amam errado, confiam torto e se oferecem de bandeja
equívocos que podem durar uma vida inteira.Abrir os olhos depois de uma
caixão quase cerrado não adianta mais, a não ser para ser purgado em uma
vida além em uma espécie de purgatório para cegos.

Mas não se enganem, a tragédia destas não
correspondências temporais não se dá apenas no outro como excusa de
engano fatal.Nos enganamos a respeito de nós mesmos..Perdemos
oportunidades por talentos nossos enrustidos e incubados, por
oportunidades desperdiçadas, por palavras não ditas na hora
certa.Perdemos a vida em um simples vacilo, por um simples olhar
enviesado que não nos deixou ver o que poderia ser um caminho bem mais
profícuo e prazeiroso.Não é sempre nem exatamente culpa nossa.Caminhamos
quase sempre às cegas porque nunca sabemos bem qual é o caminho.A
voz da experiência alheia?Só serve para cobrir de conselhos e lamentos
infrutíferos a história pessoal de quem se proclama sábio e equilibrado e
que aprendeu com os erros do passado.Erros não ensinam nada a ninguém, a
não ser que eles podem ser fatais e provocam sofrimento sem sentido.Uma
vida nunca se repete, embora alguns poucos paradigmas dêem a impressão
enganosa de que há uma certa simetria nos erros humanos.A história só
serve para iluminar o caminho passado, e há sempre uma nuance nova,
quase escondida, que revira todos os conceitos apreendidos pela
experiência.Uma tragédia sempre se renova com novas e múltiplas faces.

A solução seria talvez deixar de viver, mas ainda
creio que há algumas compensações aqui e acolá.E também não tenho
vocação para poeta romântico suicida e nem dou conselhos do tipo ‘’você
pode, você consegue’’.Não,não,a maioria nem pode nem consegue.Mas
continua tentando por falta de opção .Morrer é muito desagradável para
quem sofre do mal de ter esperança.Eu, aliás,sou um destes pobres
coitados que ainda teimam em se esforçar para ver se a coisa vai.

E enquanto isto, o tempo vai e se esvai.A única opção
para não se tornar um tragicômico e enjoado Hamlet é adotar um tom meio
que blasé.Fingir que não vê para não ver torto ou olhar meio de soslaio
com um meio sorriso para não se decepcionar muito.É preferível a ter
que fechar os olhos permanentemente.

Há os que enfrentam tudo de peito aberto e se tornam
heróis, santos.Estes são louváveis, mas têem uma vida muito cansativa e
acabam se esquecendo de certos prazeres frugais.Há também certos
sortudos que se tornam mitos sem se saber muito porque, como o nosso
Tancredo Neves, nosso quase presidente de saudosa lembrança.Saudosa
justamente porque o grande homem morreu sem tomar posse e virou
símbolo.Seu tempo glorioso foi o tempo em que não viveu.

Mas glórias póstumas também não me seduzem tanto,
merecidas ou imerecidas.Bom mesmo é ser glorificado em vida.Não me
interpretem mal, por gentileza, não desejo ser papa, presidente, nem
ganhar o prêmio Nobel.Falo de uma glória mais silenciosa, mais sutil, de
um certo reconhecimento de valores mais comezinhos tais como o amor, a
amizade, o afeto. Estas coisas cafoninhas sem as quais não vivemos .

Sou um sujeito quase simplório, entendem?Meu trauma é nunca ter
vivido a vida pacata que sonhei.Sempre sou puxado para tragédias
canastronas, mesmo que algumas sejam silenciosas.Mas a tragédia maior é
meu deslocamento. Sou um clown shakespeariano em meio a uma
tragédia grega. Dizem que é falta de caráter, mas nunca consegui ter
desejo de vingança ou rancor pessoal de alguém.Além do mais, o tempo,
que é tão cruel às vezes, cura estas coisas menores, até porque no final
já não há tempo para se preocupar com quase nada.E meu fim é o final de
cada dia.Vivo encerrando permanentemente.Não tenho tempo a perder
levando tudo muito a sério.

  

2005-04-15 07:40:00

       
  

Oferta

Eu te ofereço minhas mãos vazias

repletas de generosidade enganosa e doação inútil

Te ofereço um amor de plenitude chã,

raso como poça que espelhe o céu,

poça irrefletida de onde nasça uma flor tímida

logo atropelada por sua  iminente morte e ressurreição

pelo pólen de suas secreções

espalhada a outros frutos vindouros,

também mortos e renascidos em ciclo desesperado

Te ofereço meus erros calculados, a sílaba balbuciante de uma

palavra mal colocada que queima todos os acertos

Te ofereço em sacrifício a angústia póstuma de minha despedida

por todos os anos que perdi ainda não te encontrando

Te ofereço meus pés  desencontrados, felizes por terem chegado

à encruzilhada do teu descaminho

Te ofereço um tempo incerto

que atravessa a impermanência de sua duração

um momento projetado e incrustado

em deleites infecundos que durarão pelo espaço

de uma eternidade escorregadia

fincando nossos pés em solo movediço

Te ofereço meu suicídio em potencial,

minha semi-morte tragicômica

em resposta à vida não pertencida

que te deixei roubar de mim

como presente em fuga

Te ofereço a fidelidade presa aos meus instintos

que ora se prendem à nossa entrecruzada sombra movediça

Te ofereço meu agora imaterializado

que se desfaz ontem e se recompõe em incerto amanhã

como outro instante que o traia em sua semelhança

Te ofereço a promessa silenciosa

de quebra de todas verdades mudas

Te ofereço a traição da dúvida como prêmio

à tua existência insuportavelmente concreta

em sua coesa inexatidão

Te ofereço o desejo faminto por algo mais que não se define

e que reside ali a um passo nunca dado da descoberta

como oferta da paralisação do sentimento

que impede a locomoção mais elementar- a catatonia do gesto

do afeto que jamais se esgota em sua procura exasperada

Te ofereço uma constante tergiversação viva, dispersa em seu rumo certo,

grunhida ,berrada aos solavancos pelas esquinas, imemorializada

e esquecida pela lembrança mais forte

de tua ausência nunca chegada de fato

Te ofereço meu todo despedaçado como espelho partido

que reflete tua imagem

distorcida pelos nossos  cacos de não reconhecimento

Te ofereço a sincera versão

de uma insinceridade latente

posto nunca nos conhecermos

a ponto de nos amarmos em ideal necessariamente fabricado

colado neste esboço, neste rascunho

de uma oferta pressentida

no corpo da intenção que jaz

na reverberação de sua luz

que revela nossa escuridão

mais íntima e alentadora,

que nos cura do cansaço

de toda pretensa iluminação.

 

  

2005-04-11 05:14:00

       
  

Tratamento de tumores benignos

Há algo de edificante e até mesmo
conciliador na inveja.Primeiro porque é um sentimento democrático.Todos
sentem ou já sentiram, em maior ou menor medida, uma certa admiração
contrariada por alguém, ou seja, o desejo de posse das virtudes ou dos
méritos de outrem, seja de pessoas próximas, parentes,amigos, namoradas
ou mesmo de certas personalidades projetadas.Inveja é mais democrático
que amor, e menos trabalhoso.Amor envolve sacrifício.Já a inveja brota e
permanece naturalmente e seus malefícios são superestimados, a meu ver.

Senão vejamos.Ora, a inveja pode servir como
propulsora e incentivadora dos talentos.Quem já não se sentiu diminuído
pelos talentos de outra pessoa e não se sentiu compelido a superá-la na
mesma área de atuação?(Ah, e não confundam inveja com desprezo.Há uns
bem sucedidos por aí sem nenhum talento que não têm nada a ver com a
inveja como instrumento benéfico de que falo.São excrescências socias,
não seres generosamente invejáveis).Mas voltando,se as virtudes fossem
todas equiparadas e todos dependêssemos da simples generosidade do
próximo, a humanidade morreria de inanição física, espiritual, artística
e social.O que move o mundo é a ambição e não o amor.Ao contrário, o
amor, embora um nobre sentimento, tem o poder de destruir egos e arrasar
talentos pessoais.A inveja, um sentimento mesquinho, é capaz de
estimular o indivíduo a superar o próximo e , por conseguinte, superar a
si mesmo para alcançar o seu objetivo, e desta maneira contribuir ainda
que inconscientemente para o aprimoramento da coletividade.Um poeta que
tenta superar outro, um médico, um empresário ou sabe-se lá o que mais,
tudo em benefícicio do próprio ego, e que, de uma maneira torta(mas
objetiva) irá contribuir para o enriquecimento da sociedade.Sim senhores
, é isto mesmo que todos estão pensando:a inveja é condição primordial
para o liberalismo econômico e para o própria estrutura do
capitalismo.Vícios privados , benefícios públicos, lembram?.Em suma,
,uma mesquinharia pode muito bem se transformar em uma virtude,
dependendo de como se trabalha o contexto e a tessitura desta
mesquinharia.

Assim com tudo na vida.Sejamos claros:não existe uma
pureza primordial que guia a natureza humana, muito pelo
contrário.Rousseau era uma anta.Não existe bom selvagem, mas um péssimo
selvagem em cada um de nós.Somos todos canalhas egocêntricos em
potencial. Não há uma nobreza essencial em nenhum traço de nossa
personalidade.A única nobreza possível é tentar trabalhar esta nossa
mesquinharia de maneira a tentar sufocá-la e, quando possível(como no
caso da inveja),transmutá-la em uma virtude a bem coletivo, sem os
pressupostos ingênuos do socialismo.Se o homem é o lobo do homem, então
não neguemos esta natureza predatória, mas sim tentemos ajustá-la a um
nível em que esta ferocidade e competitividade nos traga frutos.Este é o
princípio da civilização e, de maneira enviesada, da própria
psicanálise:não tentar domesticar os maus instintos humanos, mas
adaptá-los ao convívio social, para que a caça seja justa e que os
vencedores façam de sua vitória uma virtude que alimente não só o
próprio ego, mas a barriga(física e metafísica) de toda a sociedade.E
que os perdedores tenham inveja suficiente para continuar tentando
superar os vencedores e a si próprios, ou enquanto isto não acontece,
sigam provando dos frutos dos vencedores.Tudo, claro, para o bem egoísta
de cada um e, concomitantemente, para o bem geral de todos.Sim, sim, é
no paradoxo que reside a verdade.Se não a verdade, pelo menos uma justa
adequação de meios.

Claro que há injustiças e trapaças aqui e acolá, mas isto não muda as
regras do jogo.Vencer é ótimo, invejar é terrível e a grande maioria é
de invejosos, posto que a grande maioria é de vencidos, em todas as
áreas humanas.Todas.A questão é como trabalhar este fracasso.E
fracassados que sabem tirar proveito de suas derrotas são vencedores
mais espertos do que aqueles que os vencem.Mas esta é uma outra
história…


  

2005-04-07 08:18:00

       
  

Apologia ao cão

Cães são os verdadeiros
cristãos.Não, não me processem, por gentileza.Falo no bom sentido.Tenho
certa estima exacerbada por cães, quase tão grande quanto  a que
tenho pelos cristãos e o resto da humanidade.Há algo de generosidade
plena, de um sentimento de doação sem prerrogativas em um cão, que pode
ser chutado por alguém e no momento seguinte perdoar o agressor e correr
para ele abanando o rabinho ,com a língua para fora.Sinceramente, não
conheço nenhuma alma humana, por mais caridosa que seja, capaz de um
gesto de tamanha generosidade e complacência.Cães são essencialmente
puros, desprovidos do pecado original.Cães não traem.Nunca houve uma
cadela chamada ‘’Eva’’ que ofereceu ao seu cão um ossinho conspurcado e
pleno de pecado.Não há pecado canino, não há o reconhecimento
metafísico do erro.Apenas a visão da virtude.Por isto, cães são os
cristãos ideais.

Cães são melhores que filhos.São sentimento puro,
apenas amor, sem os dissabores e inconvenientes que trazem uma relação
humana.Gostam de você por afeição congênita e não exigem quase nada em
troca, a não ser um mínimo de atenção.Poder-se-ia dizer que chegam às
raias da falta de caráter por comportamento tão dadivoso, tão desprovido
de orgulho.Mas de fato não estariam praticando a máxima que diz que
devemos amar ao próximo como a nós mesmos?Pois é, os cães vão além,
chegam a amar ao próximo mais que a eles mesmos.São, portanto, criaturas
mais gentis e mais bem acabadas do ponto de vista amoroso que
seres humanos.Amam incondicionalmente , instintivamente.Suas escolhas
amorosas são simples: amam aqueles que os amam.Não fazem como nós que
temos mania de amar criaturas inacessíveis, mesmo algumas que nos
detestam.Cães não sofrem de amor não correspondido, porque amam fácil o
primeiro que lhes dão uma porção, por mínima que seja, de amor e de
ração.

Falando sobre cães, aprendemos muito mais sobre os humanos, e sobre
nossa condição mais precária que a canina.Somos seres pretensamente
sofisticados, criamos problemas, projetamos realizações, vivemos de
passado, de futuro, quase nunca temos a menor idéia de que vivemos
em um presente permanente e que passado e futuro, a rigor, não existem
de um ponto de vista físico e material.Cães sabem disso sem o saber, e
saboreiam cada momento como se fosse o último, com a plenitude de gozo e
de felicidade que existe em cada instante.Por isto cada despedida e
cada reencontro tem um aspecto epopéico para um cão, mesmo que ele te
veja todos os dias.Não há cotidiano para um cão.Tudo é descoberta, mesmo
que o dia seguinte seja aparentemente igual ao predecessor.A única
memória canina é a afetiva.Mesmo que ele não te reencontre por anos, se
ele gosta de você, o reconhecerá de imediato pelo cheiro e pelo
amor.Nós, humanos, infelizmente, não temos o olfato nem o sentido
amoroso tão bem aprimorados quanto o de um cão.Temos esta mania de
pensar e repensar as relações amorosas, e , coincidência ou não, somos
sempre mais infelizes que os cães, mesmo que cães de sarjeta, que amam
mais e melhor que nós, pulguentos seres humanos.


  

2005-04-03 23:04:00

       
  

Carpintaria cênica


O palco é mambembe

a peça aparentemente diversa

é sempre a mesma

limitando tempo espaço e marcações

que não delimitam a ação daqueles de maior talento

que sempre prejudicam o andamento das coisas que não andam

 

O texto sem enredo específico

se apóia na idéia de um trágico deslocamento

que se desdobra em cômico descontexto.

Nas entrelinhas do silêncio eloquente

na ausência de uma palavra viva

os atores exercem sua pantomima histriônica

imitando um gesto ancestral e inescrutável

sem decorar o que todos sabem que os aguarda

 

A previsibilidade é a chave da obra

e sua condição mais original

Sem direção, o caos se organiza em desesperos estáticos , tênues

que dão fôlego aos desânimos

que se reorganizam e se desdobram para o seguimento da peça,

que não pode parar

que obstinadamente não pára

a despeito e à revelia dos atores exaustos

pela repetição dos mesmos gestos , ações e intenções.

 

A platéia é o próprio elenco que se observa

na contínua e enganosa troca de papéis,

contracenando para suas próprias personas

uma ópera muda de sombras grandiloquentes

 

Não há palmas ao final, apenas uma reciprocidade de estranhamentos

O reconhecimento de um esforço aparentemente louvável

embora certa e mortalmente extenuante.

 

As resenhas compostas pela bilheteria pagam o fracasso fatal

com palavras doces e amenas

que tentam compensar as descompensações indeléveis

Não há fim, mas um recorrente intervalo ao cair do pano

quando o esquecimento dará lugar a um hiato eterno eterno e reconfortante.

 

Sobrarão os cacos que purgarão a catarse definitiva.