Cantiga de acordar
Poesia
Cantiga de acordar
Semitons
Ando com crise de identidade
étnica.Até onde sei ,sou descendente de portugueses, italianos, árabes e
espanhóis.Tenho uma tez suavemente parda, nem tão parda a ponto de me
considerar branco, nem tão escura a ponto de me considerar negro e nem
tão remediável a ponto de me considerar mulato.Não sou branco, nem
mulato, nem negro.Não sou nada ou sou tudo.Uma mistureba indefinida de
etnias.Assim como a maioria dos brasileiros, acredito.Se digo que sou
branco, o movimento negro me chama de racista, se digo que sou negro,
riem da minha cara, se digo que sou tudo ou nada, me chamam de indeciso e
pusilânime.
Mas a crise é boa, agradável,e até bem vinda, visto
que nunca consegui apurar minha identidade mesmo.Mais: esta indefinição
étnica me dá o direito de entrar em qualquer seguimento ou movimento
racial, ou de ser expulso de todos eles.Esta crise me faz ver o
quão patética é a lei de cotas mínimas para raças e/ou etnias em
universidades e /ou quaisquer outros estabelecimentos de trabalho ou
ensino.Em um país eminentemente misturado em todos os sentidos, já é um
contrasenso se querer uma identificação precisa do que quer que seja.No
quesito cor, raça ou etnia, a coisa se complica ainda mais.Como
identificar precisamente quem é branco, negro, amarelo, azul ou marrom
em um caleidoscópio de cores e mestiçagens ,numa suruba de etnias
salutar que é o Brasil? Como identificar minuciosamente quais os
oriundos legítimos da raça negra que podem obter as vantagens no sistema
de cotas?
Eu, por exemplo, lembro de ter visto uma foto de
minha bisavó materna, em que ela parece ser meio mulata.Ou seja, em
tese, também posso ser considerado negro, porque tenho lá minhas raízes
africanas, ou mouras , sei lá.Quer dizer então que um autêntico
caucasiano, loiro de olhos azuis, se tiver e provar que tem um tataravô
africano também teria direito a benesses desta tal lei de cotas
raciais?Quem diabos teria a competência necessária para aferir a cor ou
raça de alguém em um país absolutamente miscigenado como é o Brasil?
‘’não ,vc é meio pálido, não entra’’; ‘’sim, você tem olhos verdes, mas
tem o cabelo crespo, tá dentro’’…Suponhamos:o Ronaldinho seria
barrado, visto que ele disse se considerar branco?E, caso fosse
brasileiro, o Michael Jackson entraria nesta, visto que-dizem alguns-ele
ainda é negro?
Se for para ser assim, já vou levar a foto de minha
bisavó e me declarar afro descendente.Quanto mais que, vira e mexe, ouço
falar de gente querendo indenizar todos os afro descendentes do país
pelo tempo da escravidão.Assim então, já estou me sentindo um mulatinho
legítimo, como O Fernando Henrique…
Não, não , longe de mim fazer chacota do nosso príncipe.O fato é que
ele está certo mesmo.Ele e noventa e nove por cento de nós, brasileiros,
somos mulatinhos mesmo, misturados, miscigenados.Se fosse para haver
uma política compensatória realmente séria, que fosse uma indenização
universal do país como um todo, excetuando apenas aqueles que sempre
foram os ‘’feitores’’ não só de uma raça, mas de uma nação
inteira.Utopia minha? Concordo.Mas pelo menos minha utopia é mais lógica
e não obedece a esdrúxulos critérios raciais que não só promovem uma
espécie de racismo às avessas, como promovem a imbecilidade coletiva,
que , por si, já nem precisa de promoção.
Teoria conspiratória
Você é corrupto, cafajeste, mau
caráter, prevaricador, canalha? Todas as evidências, todas as provas
apontam contra você? Não há mais nada que possa salvá-lo? A solução é
simples:basta levantar a teoria conspiratória;diga que há um movimento
subterrâneo das forças ocultas da direita, do mal, do capeta , ou seja
lá de quem for que garanto que sempre haverá gente que aposte na sua
inocência, talvez até a maioria das pessoas.
Reparem como esta é a solução utilizada por todos os
réus desesperados, desde governos acuados por denúncias de corrupção,
passando por genocidas até chegar no mais ínfimo e simplório mau
caráter.Todos alegam, em última instância, um complô oriundo sabe-se lá
de onde para destruí-los.Isto tudo é meio referendado pela história,
claro.Para cada inocente injustamente acusado, há em seguida um
século repleto de picaretas a alegar inocência baseando-se
neste ou naquele caso de condenação injusta.O caso Dreyfuss no mundo e a
suposta conspiração comunista criada por Getúlio no Brasil, por
exemplo, rendem até hoje discursos sobre mega conspirações, falsas ou
verdadeiras.O fato é que,para cada conspiração real, há um milhão de
crimes reais e falsas conspirações.A teoria da conspiração é o refúgio
primordial dos caras de pau sem salvação, o último apelo dos
prevaricadores;salva e ressuscita políticos e empresários semi mortos e
reergue a carreira de carreiristas sórdidos.Conspirar a respeito de
supostos conspiradores é a onda dos supostos conspirados.
A esquerda mundial , por exemplo, adora uma
conspiraçãozinha.Para eles, a perseguição política está em toda
parte.Agora mesmo, ouvi dizer de renomados artistas que o julgamento de
Michal Jackson foi uma armação da América conservadora e puritana contra
um nobre rapaz(Jackson) que nada mais é que ‘’uma obra de arte
humana;um ready made de Duchamp’’;por isto a fúria republicana contra
este democrata heterossexual e nada pedófilo que é nosso querido
Michael, que agora absolvido, poderá comemorar sua absolvição, sem
nenhuma malícia ou pudor conservador, com seus fãs mirins em sua
caminha.A esquerda festiva festeja, claro.
Aqui na terrinha, o espírito Brizolista, vira e
mexe, volta com força total na boca de nossa esquerda que governa
igualzinho à direita, diga-se de passagem.Brizola sempre via o atraso
brasileiro como um processo de desgaste pelas perdas internacionais,
pela subjugação do caráter nacional aos interesses estrangeiros.Não
estava de todo errado o Leonel, visto que ele não era nenhum canalha,
apenas um ingênuo com algum vislumbre de algo vagamente concreto.Agora
outros originais do outrora patrimônio da ética nacional, o PT, acusam
‘’as forças da direita’’ como responsáveis pela decadência vertiginosa
do já póstumo governo Lula, que Deus o tenha.Pena que os nobres petistas
‘’conspirados’’ não tenham herdado algo das ingênuas boas intenções de
Brizola, mas apenas do seu oportunismo político e de uma certa esclerose
nos juízos de valor…
Mas você, meu caro leitor que não conspira, duvida
que ainda há gente que acredita nesta conspiração contra o casto governo
do PT? Claro que há.Há crédulos para tudo neste vida, há uma procura
incessante de uma verdade oclusa, oculta, reveladora e redentora.Estão
aí os fiéis da Igreja Universal que não me deixam mentir ou
conspirar.Eles acreditam tanto no seu pastor Edir Macedo, como acreditam
do partido de Edir, o Pl, por sinal, sem nenhuma atividade
conspiratória, aliado do ético governo petista.
Conspirações veladas de minha parte à parte, o fato é que
conspirações existem mesmo.Algumas delas são até visíveis ao ar, pesadas
de tão concretas.A mais grave de todas é mesmo a conspiração da
desfaçatez, da mediocridade contra o bom senso mais elementar.E ela
quase sempre ganha e paira plena, acima de conspiradores e conspirados.
Em (des)verdade
A verdade me persegue
A verdade me conduz
à cegueira da visão consentida
bloqueia minhas encruzilhadas e tangentes
obstrui a invenção de mim mesmo
A verdade não salva
e aprisiona libertações feéricas
rende sorrisos
complacentemente desdentados
vilipendia a imprudência redentora
limita a criação lúdica
de algo mais que a verdade
A verdade limita, mente ao se proclamar plena
e aliena tergiversações possíveis e necessárias
Em verdade, a verdade não se materializa
torna-se palpável de acordo com a correnteza
Em verdade, em paradoxo sofisma,
verdade não há
(primeira e derradeira verdade mentida)
apenas o consolo desconsolado
de pontes movediças
que conduzem à margem
de precipícios sólidos
Em verdade, há o caminho
a ser construído
em solo movediço
há o aceno ao longe de algo a ser perseguido
há a fuga da sombra inefável que persegue
há a tentativa de desapego ao chão limitador
calçado em verdade movediça
Em verdade,há a possibilidade
da desverdade lírica de cada mentira bem intencionada
que arromba todo o embotamento de convicções surdas
e restaura a recriação de uma recorrente ressurreição.
A perigosíssima invasão dos novos bárbaros
Conheço pessoalmente uma meia dúzia
de antropólogos e mais uns tantos que já vi e ouvi
‘’midiaticamente’’.Todos eles usam ou já usaram rabo de cavalo,
cavanhaque e óculos, simbolizando uma extravagante simbiose de acadêmico
com cacique Cheyenne .Parece haver um simetria estética na atuação
deste grupo, o que de certa forma vai contra as premissas de libertação
cultural da antropologia.Há por parte destes senhores uma preocupação
tão intensa em parecerem liberais quanto a usos e costumes que acabam
criando um padrão de libertação de vestuário, aparência e
comportamento.Resta avisar a estes senhores que o conceito de
‘’libertação’’ não se coaduna ao de ‘’padrão’’.
Vejam bem, a coisa parece ser bobinha, mas não
é.Antropólogos ganharam status demais no século passado e têm uma
tendência inexorável à chatice e ao discurso oco, além de , em geral, se
vestirem muito mal.Oh, longe de mim desmerecer os pressupostos básicos
da antropologia, ciência emérita que se propõe a estudar as origens e a
cultura do homem.Mas convenhamos que certas adjacências da antropolgia
configuram a base de todo o porre do século xx, que se arrasta(m) pelo
comecinho deste novo milênio.
Dois dos mais graves são o relativismo e a abstenção
de juízos de valor, que no fundo são a mesma coisa.Para o relativismo
antropológico , uma sinfonia de Beethoven tem o mesmo valor simbólico
que um batuque tribal de Uganda, e assassinatos podem ser tratados como
normais, dependendo do contexto religioso, étnico ou regional.
Acham que é exagero?Pois bem, um certo antropólogo,
antigo professor meu de faculdade chegou a comparar a castração de
mulheres em regiões da África à depilação das mulheres
ocidentais.Segundo este meu ex-professor, tudo isto faz parte de um
contexto de violência consentida culturalmente ao corpo.Sério mesmo.Ele
dizia isto alisando os longos cabelos grisalhos e coçando a barbicha de
indígena intelectualizado e sabichão.Quando eu, obscurantista
etnocêntrico que sou(nos dizeres dele), quis protestar contra este
liberalismo amoral, o liberal professor me condenou a entrevistar
inúmeros metaleiros evangélicos como castigo à minha insubordinação
contra a sua tese de ampla liberdade de pensamento…
Pode parecer piada, e é mesmo:uma piada real e de mau
gosto.Se fosse apenas pela chatice endêmica destes antropólogos, eu
sequer escreveria isto aqui.Mas acredito que a abstenção de juízos de
valor não seja apenas um formalismo tolo e intelectualóide.Ao contrário
do que almeja, ele promove a antipatia entre diferentes culturas, ainda
que seja uma antipatia velada por pudores politicamente corretos.Quando
fiz as entrevistas com os tais metaleiros evangélicos, a despeito de um
sorriso complacente que ofereci a todos eles, tinha vontade de dizer a
todos que Rock é coisa do capeta mesmo(e olhem que detesto Rock
também).Não dá, entendem?A cultura é um processo competitivo, em que os
melhores sobrevivem.Acredito em uma hegemonia ética, moral e
artística.Não me sinto no dever de respeitar quem castra mulheres por
preceitos religiosos ou quem diga que o Axé Music tem a mesma
importância cultural que a obra de Bach.O relativismo antropológico
comedido é chatinho.Mais amplificado, torna-se nefasto.
Por isto, cortemos os cabelos de pajé destes pseudo intelectuais e
incutamos nas cabeças deles que todo ato de pensamento é, em si, um ato
de julgamento.Estamos condenados a julgar tudo aquilo que vemos, com
maior ou menor grau de erro, dependendo do poder de avaliação crítica
estética, moral, ética e intelectual de cada um.Eu, por exemplo, tenho
horror à Heavy Metal(seja de Deus ou do diabo), castração de
mulheres,Axé Music e antropólogos cabeludos com cara de índio
nambiquara.Sobre estes últimos, como um gentil homem ocidental, devo
dizer enfaticamente:são uns bárbaros.
Quase sem sentido
Foi-se o tempo em que as coisas
faziam sentido.Em tudo, digo. Arte, política, sociologia,
religião,etc.Tudo que tenha um sentido claro, cartesiano, com princípio,
meio e fim é recebido hoje com sorrisinhos de escárnio e
desconfiança.Muito sem graça este negócio de não haver mais oportunidade
de um belo discurso claro e pedagógico de boas intenções,
algo quase utópico e ingênuo hoje em dia.E ainda ser recebido com
muxoxos de desconfiança e menosprezo quando se tenta algo do tipo.
O pior é que este parece um caminho sem volta.Vejam o
cinema, por exemplo:quando vejo um filme americano hoje em dia, me dá
saudades do cinema noir dos anos quarenta.Em preto e branco, o sentido
que se fazia era mais realista, justamente pela impressão de um certo
distanciamento consentido da realidade.Aquilo não convencia ninguém, mas
divertia, como todo o sentido fabricado da vida.O
aparente realismo do cinema americano de hoje é bobo, infantil e se
leva a sério;é, em suma, um cinema infantilizado e metido a besta, que
todo o resto do mundo copia, como macaquitos.Restam alguns
imitadores de Godard, de Fellini, Bergman e outros que tentam –em vão-
não fazer sentido.Mas falta-lhes competência, pobres coitados.Não fazer
sentido com talento não é para qualquer um.A aparente falta
de sentido fabricada por alguns gênios da arte revela
um sentido encoberto, multifacetado e complexo, privilégio de quem
tem talento para não fazer sentido no sentido claro do
termo.Então o problema de quem tenta-sem sucesso-não fazer
sentido:incompetência sem sentido é menos identificável que com
sentido.Por isto a profusão de pseudo artistas que grassam por aí.
O cinema é só um exemplo que arrola uma infinidade de
outras áreas:literatura, teatro, música, artes plásticas, etc.O
primeiro culpado de tudo isto foi mesmo o Marcel Duchamp, com esta
história do ‘’self made’’, de que tudo é arte , dependendo do contexto,
até mesmo uma roda de bicicleta descoberta ao acaso.É arte nada.Arte
pressupõe criação, imaginação,construção humana com fins
deliberadamente artísticos.A roda de bicicleta não sai de seu
contexto utilitário só por causa da imaginação transubstanciadora de
alguém.Sem o discurso de blábláblá de Duchamp, quero ver alguém olhar
para todas as rodas de bicicletas do planeta com olhares densos e
profundos de críticos de arte.Talvez fosse este o sonho de Duchamp
mesmo.Transformar todo o mundo em um exército de pedantões sofsticados e
fruidores artísticos.Todo mundo meio esquisito e afrescalhado, como
ele, Duchamp.
Mas não adianta choramingar que o sentido morreu
mesmo.Olhem para a cara de Lula ou de Bush e vejam se não parecem com
personagens de ficção mal feita, de romance ‘’B’’ de espionagem ou de
filme de guerra de terceira categoria.O mundo virou uma obra de arte mal
elaborada, uma roda de Duchamp sem discurso, uma instalação de museu de
arte moderna.
E ai daquele que tenta fazer sentido.Falo por
experiência própria.Uma amiga minha riu na minha cara quando eu lhe
disse que amar era o único sentido da vida;me disse que eu vivia um
conto de fadas psicanaliticamente mal resolvido.Outro amigo meu me
esnobou quando eu disse que havia detestado uma peça em que os atores se
limitavam a brincar de balanço fazendo movimentos ‘’epifânicos’’
durante um hora de espetáculo.’’Você precisa estudar epistemologia’’,
disse-me ele.
É duro, eu sei.Sou uma peça de museu de arte de retaguarda.Um filme
em preto e branco, uma tentativa patética de se fazer sentido.Nem mesmo
eu suporto esta minha mania de querer chorar de tristeza por não
encontrar sentido em mais coisa nenhuma, coisa típica de romances
sentimentais para senhoras que insistiam irritantemente em ter começo,
meio e fim.Ainda por cima, tudo muito mal escrito, como esta crônica
quase sem sentido.Quase, eu disse.
Não destemperado