2005-07-25 00:20:00

       
  

Cronologia da dor perene

Dói não sei onde
em foco que não se percebe
em pele que não reveste
em carne que não se sente
 
Dói a mesma ausência anestésica
Dói em horizonte projetado
Dói na inconsciência
Dói a inadimplência dos rumos
 
Dor física e metafísica
dor de origem inconcebida
origem desnaturada
natureza sem gênese
Metástase concêntrica sem centro
Dor evasiva invasiva ubíqua
 
Dói no prazer de amar
Ama-se no prazer de odiar
Dói a cópula de viver
Dor incondicional
condimento do prazer
 
O corpo que sustenta a dor
responde como seu próprio unguento
A dor sustenta o alívio
dos devidos vícios necessários
à manutenção da virtude maior:
 
a dor de amar e nada receber
prazer mórbido de doação inútil
dilaceração das chagas na oferta em vão
 
Continuar é doer indefinidamente
masoquismo perpetrado estratificado
nos dentes do sorriso da tortura complacente.

  

2005-07-21 22:08:00

       
  

Sociologia gastronômica ou O assassinato consentido e necessário

Vegetarianismo é um crime contra a
natureza humana.Certo que é próprio da humanidade modificar a própria
natureza, mas que continua sendo crime, continua, ora.Como um leão
herbívoro ou um coelho que comesse carne de boi.Bizarrices.

Reza a cartilha vegetariana que comer carne é um
crime contra um ser vivo.Claro que é.Um assassinato consentido, legal e
moralmente aceito.Saboreio sem culpa um bife sangrento de uma vaca.Não
tenho dó nem piedade de uma vaca.Um bicho plácido, sem graça, enjoado
como um vegetariano.Não me admira que vacas comam capim e ração, como os
vegetarianos.

Mas como distinguir um animal comível de um que não
seja? Por que um cachorro frito é um acinte e uma galinha não?Ah, não me
venham com antropologices; com este negócio de cultura relativa porque
tudo é relativo, até o absoluto, etc e tal.Tenham dó.A resposta é
simples.Tudo se resume ao aspecto metafísico do bicho, no jeitão
dele.Cães ou gatos são demasiadamente parecidos conosco em nossos afetos
para serem comidos(até melhores que nós, eu diria).Quanto mais
distantes do comportamento humano, mais o nosso instinto assassino se
arvora.Alguns que estão no limiar entre a semelhança e a distância nós
devoramos, como bois e frangos.Matamos e temos nojo daqueles que distam
do nosso comportamento como baratas e formigas .

Vou mais além:há que haver um certo grau de
assassinato consentido para domar os instintos humanos.Vacas, galinhas e
peixes foram feitos para isto mesmo:serem mortos e devorados;feitos
para saciar nossa sede ancestral por sangue sufocada pelos excessos de
civilização.Não podemos matar nosso semelhante, ainda que seja um
canalha?Então matemos as vacas a as galinhas, ora esta, e saboreemos
suas carnes como índios antropófagos saboreiam antropólogos
politicamente corretos.

Sem este escape assassino consentido, ainda que seja
inconsciente, a psicopatia floresce.Reparem nas caras plácidas(como as
das vacas) dos vegetarianos;vejam como todos parecem psicóticos em
potencial, futuros maníacos verdes.Reparem nos efeitos colaterais do
vegetarianismo:a chatice endêmica, o anacronismo(todos oriundos dos anos
sessenta), a eco baboseira, a anorexia, o aspecto verde, a cara de
agrião.Os mais patológicos acabam fazendo parte do Green Peace.Destes eu
não gosto nem de me aproximar…

Dizem os naturebas que a carne induz a um certo
nervosismo.Mas, criaturas, um certo nervosismo é necessário, uma certa
gota de bile é absolutamente indispensável à humanidade.Eu, por
exemplo, jamais escreveria sem um tantinho de ódio incrustado à
pele.Se isto é resultado de meu alto consumo de picanha, bendita
picanha, ora…

Ademais, paz demais enjoa, dá preguiça.Se você sofre de insônia,
tente conversar, ou melhor, tente simplesmente olhar para a cara plácida
de um vegetariano durante cinco minutinhos só.Funcionará como um valium
instantâneo.Você dormirá sem ter percebido e logo estará contando
carneirinhos, ou melhor, pés de alface.

  

2005-07-17 21:21:00

       
  

Vícios públicos, falsas virtudes privadas, benefícios de nenhuma espécie

Sempre tive birra de Belo Horizonte,
minha cidade.Provinciana, sem caráter,elo difuso entre uma pretensa
sofisticação urbana e uma caipirice incrustada, Belo Horizonte coaduna o
que há de pior em uma cidade grande com o que há de pior em uma roça.Os
preconceitos jecas se somam ao caos urbano.

Mas algo nesta somatória de negativas acabou por me
surpreender.Sendo eu original dos meios de comunicação,sempre olhei com
um muxoxo tanto a imprensa quanto o mercado de publicidade
beloriozontina, que, salvo raras exceções individuais, são compostas
pelo que há de mais medíocre no cenário nacional.Qual não é minha
surpresa quando percebo que minha doce metrópole se tornou o centro
financeiro da corrupção nacional.Isto tudo partindo de duas agências
publicitárias, ora vejam.Se a publicidade mineira não dá para o gasto
para consumo visível, então produz implicitamente a imagem extremamente
bem concebida da desfaçatez mineira, a popular cultura do come quieto,
ou do corrompe quieto, se preferirem.

Disse estar surpreso? Bem, nem tanto.Nada mais
sugestivo do caráter belorizontino que firmas de publicidade que , em
princípio, visariam tornar público determinado produto, mas fazem coisa
bem diferente:escondem o público através de negociatas privadas com os
dividendos da coisa pública que, por sua vez, financiam os interesses
privados de homens públicos.

Confusa a equação da última sentença, não?Mas é assim
mesmo que funciona a tradicional cultura mineira, em especial a de
minha querida metrópole.A discrição mineira decantada em prosa e verso
fazem de Belo Horizonte a cidade ideal para palco de equações complexas
que revelam, ou melhor, que tornam mais ambíguo o tal caráter
mineiro.Aqui, nada se vê,mas tudo se cheira ao longe.Os sentidos são
sempre oclusos, enviesados, escorregadios, como uma sinestesia
meticulosamente planejada.

Por isto, meu caro leitor não residente em beagá,
quando ouvir falar da tradicional discrição e reserva de um mineiro,
fuja correndo.No Brasil, temos várias nuanças de mau caratismo:a
explícita malandragem carioca, a canalhice fria e objetiva paulistana, o
primarismo medieval nordestino, e outras mais.Mas nenhuma delas se
compara à sordidez lânguida e melíflua de um mineirinho desconfiado.O
mineiro desconfia justamente por não confiar em si mesmo, porque sabe de
antemão do que ele é capaz.Claro, a falta de caráter não é vício
exclusivo da mineiridade.Mas há esta maneira mais enviesada de lidar com
a própria canalhice, esta auto consciência de ser canalha e de
desconfiar da canalhice alheia, já sabendo antemão da própria.O extremo
oposto, por exemplo, de uma certa ingenuidade da canalhice carioca que
se proclama canalha aos berros.O mineiro , por sua vez, é canalha em
silêncio.Marcos Valério que o diga.

Você, caro leitor, poderia estar se perguntando por que diabos
confiaria em um belorizontino que escreve coisas abomináveis a respeito
de Belo Horizonte e dos seus conterrâneos.Não posso lhe responder,
prezado leitor.Afinal de contas, sou um belorizontino e mineiro
discreto…

  

2005-07-11 22:24:00

       
  

Gravidade

 

 A queda é livre, lânguida e constante

Cai-se de pé permanentemente
quando se pensa andar para a frente
Cai-se porém não para baixo
mas para o centro

(Chão:ilusão delimitadora
Impasse obstruindo a livre passagem
para algum cerne impalpável
Limite permeável de uma queda fictícia)

Destino convergente para incerto âmago
sucção irreversível de tudo, nada e algo mais
atração inviolável entre os corpos
desejo tácito de se tornar eixo
que se esboroa 
no caminho da colisão
Pulsão de aproximação
Pulsão de choque:gravidade

Viver: cair aparentemente
não para baixo pois chão não há
mas para um centro em horizonte incerto
A queda é ascese para o corpo mais próximo

Fim e princípio frutos de uma mesma
miragem estratificada de terra plana

Atração e repulsão
Amor e ódio 
frutos de um mesmo sentido
de atração inviolável entre os corpos
(Flutua à deriva a indiferença,
Sorrindo de nossa gravidade)

Corpos soltos ao léu que se prendem
por força indelével ou desapego à solidão
Corpos que aspiram ao paradoxo central e redentor:
fusão impossível, choque inarredável

Deitar-se como única tentativa plausível de libertação
Anulação bufa de uma queda farsesca:

Tornar-se plano como planície inexistente
Tornar-se chão como chão inexistente
Tornar-se centro como complacente colisão entre os corpos

E então levantar-se e cair para cima.
E tornar-se céu, este deslimite também ilusório.

 

  

2005-07-07 15:02:00

       
  

Em defesa dos mal amados

Há uma certa nobreza torta e
enviesada em ser mal amado.O amor platônico, não no sentido erudito, mas
no popularesco mesmo, do amor não correspondido, tem virtudes
estranhas.A mais rotunda delas é a de que o amor não correspondido é o
único que dura pela eternidade, justamente porque nunca consumado.Fica
sempre no terreno da idealização, e mesmo que esquecido, se estratifica
na memória como catarse potencializada do que poderia ter sido.Não se
esquece um amor não correspondido , se sublima.Mas a coisa fica sempre
lá, latente e incólume, ainda que reclusa.O mal amado ama sem restrições
de retorno amoroso, e ama eternamente; por isto e muito mais, é
mais nobre, mais digno que estes que são amados ad nauseum por aí.

Acham que é conversa de desiludido? Pois bem, em
verdade vos digo:o primeiro grande mal amado da história ocidental foi
Ele mesmo, o próprio Jesus Cristo em pessoa.Resolveu amar a humanidade
inteira e em troca lhe pregaram na cruz.Sucumbiu e ressuscitou por amor
não correspondido.Lhe traíram pela companhia do canhoto, trocaram sua
divindade generosa pela fanfarronice plebéia.E o Homem continuou lá,
amando sem pedir nada em troca, sem medo de rejeição, incólume na sua
teimosia amorosa, sem uma chispa de dor de cotovelo.

Não por acaso, rezam as más línguas que o
Cristianismo seria o platonismo do povão.Cristo amou idealmente, sem
pedir nada em troca, igualzinho como Platão ensinou.Não abusou da coisa
amada e amou sem reticências, apesar e a despeito dos defeitos da coisa
amada, no caso, a infame humanidade.

Pois bem, hoje em dia , quem ama sem ser
correspondido é taxado de pateta.Qual nada.Amor em sentido unilateral é
de uma beleza poética insuperável e insofismável, embora o sofrimento
seja comparável a uma espécie de câncer do ego.Mas ora, nada mais
beatificante que um ego despedaçado, que um eu corroído pela doação
tragicômica de um amor sem retorno.Dá para se sentir uma espécie de
deidade generosa e complacente aos tolos mortais. Compreendem?

Reparem nas faces daqueles que, em vez de amar, são
amados sempre, que nunca sofreram uma rejeiçãozinha amorosa.São todos
gordos, rosados, sempre com um sorriso meio apalermado, com uma
felicidade abobalhada e abobalhante.Ser amado em demasia é prejudicial à
saúde do intelecto e da alma.Um certo tanto de dor é indispensável à
educação sentimental.Pobre de quem é amado demais.Nunca compreenderá uma
piada de Woody Allen, sempre dormirá nos fimes de Bergman e passará
eternos fins de semana jogando frescobol e aplaudindo o pôr do sol.Ser
amado demais é coisa de surfista carioca.

Amor, queridíssimos, implica sacrifício,
perdão,dor,tragédia implícita ou explícita.Amor para valer é um
sadomasoquismo sofisticado, um jogo de perdas e danos em que ainda que o
sofrimento seja dilacerante, a recompensa, ainda que
invisível,inalcançável, é mais que gratificante:a simples recompensa de
amar, independente do objeto amado.Amor de verdade é tal e qual uma
canção brega e canastrérrima de Vicente Celestino.Aprender a amar
direito requer anos de rejeição e mágoa.

Em suma:que me perdoem os bem amados, mas só os mal amados amam verdadeiramente.

  

2005-07-02 10:42:00

       
  

Intermezzo crudelíssimo

Sejamos francos, convenhamos: a vida
é mesmo um desacerto, não?Há aqui e acolá pequenas epifanais, outras
tantas compensações, mas no final das contas, há mesmo mais atropelos e
chateações que prazeres , não?

Pois bem, tudo somado(ou subtraído) o fato é que a
maioria de nós continua vivendo, sem apelar muito para a metafísica, que
a coisa causa cefaléia e outros efeitos colaterais mais graves.E ainda
temos as tais compensações, que, a priori, são até bastante agradáveis
às vezes e que nos dão um certo alento ocasional.

Mas quero justamente, birrento que sou, esculhambar
estes mesmos intervalos de felicidade que nos dão este eventual sabor
ameno de quero mais, que nos remontam a nossa infância egocêntrica,
quando saboreávamos o prazer de ser o centro do universo, quando o
sentido da vida era pura e simplesmente nosso ego, nosso desejo.

Depois da primeira rejeição do seio materno é que
coisa degringola de vez.Desde então, sobrevêem as regras, tabus,
proibições e a tal descoberta do outro.Não é mesmo um acinte descobrir
que o tal ‘’outro’’ existe e que tem os mesmos direitos que
você?Pior:que sua liberdade plena e egoísta é podada devido à liberdade
alheia?Ou seja:esta terrível constatação melancólica de que é
moralmente errado usar outra pessoa a seu bel prazer.Um horror, um
horror…

Mas, como bons cristãos pós freudianos, aceitamos a
hedionda e necessária regra do jogo:somos mais um na multidão.E , daí
por diante, alternamos decepções, desilusões, desencantos, frustrações,
fracassos com alguns momentinhos de felicidade.

Pois é, a felicidade é exceção, senhores! Pequenos
momentos de alívio em meio a uma constante de desmazelo existencial, o
que , de certa forma, torna a vida uma espécie de tortura chinesa
sofisticada, que lhe oferece pequenos alentos para que você suporte o
que há de enfadonho e terrível em viver.

O objeto de estudo, para antipatia dos acadêmicos,
sou eu mesmo, no caso.Tenho um medo surreal destes momentos de
felicidade, entendem? Fico sempre desconfiado, ressabiado, esperando por
alguma notícia ruim, que, inexoravelmente, sempre vem.Daí então respiro
aliviado.O normal , ou seja, a nhaca metafísica volta a tomar forma
real e física mesmo.

Dirão os manuais de auto ajuda(em forma de livro ou
humana mesmo) que isto é falta de positividade ou pessimismo.Que
seja.Mas reparem que os pessimistas sempre acertam no fim das
contas,apesar desta mania esquisita de certas pessoas de abrirem sempre
um sorriso pleno de felicidade total e irrestrita, a despeito das
circunstâncias adversas.Destes, eu tenho inveja mesmo.Ainda aproveitam a
plenos pulmões o ar puro da fase oral da primeira infância.Colocam tudo
na boca e acham gostoso, até o que, para os paladares mais elementares,
tem um sabor mais que azedo.

Bem, tudo isto é por uma péssima notícia que recebi anteontem que me
tirou de um estado encantatório a que estava submetido até então.Estou
usando sua paciência, caro leitor, como elemento catártico para curar
uma dor de cotovelo mal resolvida.Ainda assim o texto é válido e, no meu
entender, verdadeiro.No mais, me perdôe o uso indevido de outrem(sim,
você mesmo) como projeção de meus problemas pessoais.Foge ao meu
controle.Apesar da(minha) superação da fase oral, certos elementos
perdidos na infância sempre voltam à tona.Principalmente os piores.