2005-09-30 13:14:00

       
  

Retrato

Esboço o desenho da tua ausência.
Tua distância é minha companhia solene e insidiosa.
Ainda sobram os matizes da tua lembrança idealizada
mas o rascunho do contorno do teu corpo já se perde
na escritura imemorializada composta a sangue e mágoa.
 
Tua presença imaterializada se escreve a seco
como secos os olhos que já não vêem
como ressequidas as mãos que já não tocam
apenas percebem a lenta composição do esquecimento
 
Fuga sem cor tons esmaecidos
quase nada sobre tela em branco
apenas uma mancha plácida-
sujeira indelével do projeto de uma obra sonhada
sem moldura, sem acabamento, sem começo, sem fim
apenas um projeto
 
Por isto mesmo, eterno.

2005-09-24 15:03:00

       
  

Menos verdade, por favor

Todos buscam e perseguem a verdade,
ou pelo menos fingem que.Psicanalistas, religiosos, filósofos,videntes,
juízes de futebol, juristas(estes nem tanto).Com maior ou menor
intensidade, a busca da verdade chegaria a ser tediosa, não fosse nociva
por vezes.Algumas revelações e epifanias deveriam ficar debaixo do
tapete mesmo.Uma verdade desagradável não tem muita serventia a não
ser desagradar de fato.Não faço aqui apologia da cegueira ou da
imbecilidade, estados sólidos da não aspiração à verdade, mas digamos
que algumas informações factuais são mais que desnecessárias, dependendo
do contexto.

Verdades desagradáveis como as milhares de cartas e
revelações públicas da vida sexual e amorosa de Jean Paul Sartre e
Simone de Beauvoir, que constrangeram dezenas de amantes usados ad
nauseum para satisfação don juanística do ávido casal
existencialista.Ah, a verdade factual da vida comezinha de filósofos,
poetas e artistas em geral é sempre decepcionante.O mundo das idéias
abstratas, ainda que sejam idéias realistas, é sempre mais fascinante
que a verdade bruta dos fatos, justamente porque uma verdade concebida
se apóia no etéreo, no imaterial.Uma verdade palpável geralmenrte é
pegajosa e malcheirosa.

Alguma hipocrisia é mais que necessária à manutenção
de uma sociedade salutar, do micro ao macro.Traições conjugais, por
exemplo, são quase sempre inevitáveis em determinadas ocasiões.Uma vida
inteira de fidelidade é patológica.A única fidelidade possível é a
fidelidade aos próprios instintos.Sim, sim, às românticas leitoras de
‘’Sabrina’’, já respondo que de fato o amor é uma relação patológica em
si.Mas falo de instintos, e estes são, em maior ou menor grau,
irrefreáveis, mas controláveis socialmente.E este controle implica um
certo grau de mentira tácita, participativa, partilhada por um
casal.Contar ao cônjuge que desejou ou mesmo que tirou uma casquinha
física ou metafísica do objeto excuso de desejo é uma terrível falta de
educação.Pior ainda quando praticados em nome de alguma filosofia, como
fizeram os famigerados Jean Paul e Simone.

Bem, já repararam que não falo aqui de verdades
superiores, transcedentais.Estas são de ordem mais esquizofrênica, do
tipo religiosa.A verdade comezinha é a que se pode tocar.E eis o
ponto:suponhamos que você veja um montículo de cocô na rua.Você percebe
pelo aspecto, pelo cheiro, que é cocô.Mas você não apalpa o cocô para
ter uma prova empírica da existência do dito cujo.Assim com certas
verdades factuais.Pode-se até pressentir algumas delas, mas pode-se
circunscrever o nível de necessidade de aferição desta verdade e não
entrar muito no seu mérito mais profundo.Não é de bom tom, nem mesmo
agradável buscar detalhes de uma traição, assim como não se é adequado
investigar as origens do fracasso ou do malcaratismo de alguém.Alguns
problemas irreversíveis são mais afeitos à paliativos, a remédios que
atacam as consequências, não as origens.

Por isto a psicanálise é um tratamento sofisticado
para verdades comezinhas;por isto a psicanálise não funciona direito.A
mistura entre absoluto e factual sempre soará meio esquisita.Freud foi
um grande literato e pensador, mas talvez tenha sido um cientista meio
desnecessário.Suas verdades reveladas já eram mais ou menos deduzidas.Há
algo de podre em verdades impudicas do inconsciente humano que talvez
fosse melhor ser deixado por lá mesmo, apodrecendo nos grotões.Pelo
menos enquanto a coisa não cheire mal a ponto de perturbar os
vizinhos.

Eu, cá por mim, convivo bem com minhas patologias ,que são suaves e
controláveis socialmente.Já me bastam de descobertas.Prefiro certos
confortos e certos prazeres a certas revelações.Um segredo sabiamente
escondido por vezes pode ser bem melhor aproveitado que uma verdade
manifesta.E geralmente o é.

  

2005-09-19 21:57:00

       
  

Celebração do espelhinho de segunda

Venerar algo ou alguém, por mais
venerável que seja o dito cujo ou a coisa, é coisa esquisita;espécie de
narcisimo contrariado e reprojetado, vaidade desfocada.O sujeito que não
tem nenhum talento, nenhuma habilidade especial, nenhum mérito mais
diferenciado, venera.Invejar é mais saudável e mais afeito ao espírito
humano.Cobiçar com plena mesquinharia as virtudes alheias é mais salutar
que babar diante do próximo, a meu ver.

Por mórbida estranheza , nunca veneraram tanto quanto
agora.Em época em que não há quase ninguém(quase?) venerável, nunca
proliferaram tantos ídolos.Já ouviram, por exemplo, falar de uma tal de
Paris Hilton? Vejam o curriculum vitae da moça:filha de alguém muito
rico, feiosa, nariguda, não sabe atuar, não sabe falar, não canta, não
dança, se veste mal,se expressa mal e fez uma fitinha de sacanagem
caseira com o namorado cafajeste.É idolatrada nos Estados Unidos por
adolescentes e esteve no Brasil, onde foi o foco da atenção da mídia.Que
diabos esta criatura fez- por misericórdia, me expliquem- para fazer
sucesso?

Não é meu interesse chutar cachorro morto mas me
assusta a idolatria desvairada a quem nada fez e a quem nada é.Se ao
menos as pessoas idolatrassem pessoas que tivessem um tiquinho de
talento, ainda que mal vocacionado, vá lá.Mas idolatrar o nada em forma
de gente?Desfilam diariamente fenômenos do tipo Big Brother em que
pessoas se tornam célebres por ..serem célebres.Assim a vida midiática
de costumes e adereços de nossos tempos modernos:um pleonasmo debilmente
surreal.

Bem, vamos à tese:os medíocres parecem ter descoberto
a mediocridade refletida na mediocridade de outrem, compreendem?Em vez
de enaltecerem quem lhes seria superior, resolveram adotar a
mediocridade como elemento benemérito, digno de veneração.Isto explica
muita coisa ou quase tudo em nossos tempos melancólicos, desde o sucesso
de Paris Hilton, passando pelo fenômeno dos Big Brothers até à eleição
de lula.

Eventualmente, a coisa tende a gerar certas
extravagâncias.Pessoas medíocres que antes se moldavam em quem lhes era
superior agora se moldam em quem lhes é igual, o que torna tudo mais
fácil e palatável para eles, fenômeno que gera ao mesmo
tempo um exército de imbecis acontentados e rotundamente
apalermados com a própria felicidade vazia.A vagabundinha da escola vai
se inspirar na própria vagabundagem projetada em Paris Hilton. E quem
sabe resolve fazer um videozinho de furunfação como a ídola
platinada?Quem sabe também algum operário padrão deste que fala ‘’nós
vai’’ resolve salvar o país e se candidatar a presidente da
repúbilca(alguma sensação de déja vu por aí?…)?

Meu libelo é pelos que não são medíocres, ou pelo
menos por aqueles que tentam não ser, ou mesmo pelos que são, mas
reconhecem que a mediocridade não tem valor e não deve ser enaltecida-o
que é, por sua vez, um gesto nobre que indica a perda da mediocridade
até.Claro que os não medíocres são minoria, mas democracias não estão
tão na moda hoje em dia?Defesa de minorias não é o supra sumo das
práticas politicamente corretas?Então defendo o direito dos não
mediocres se expressarem, ainda que a multidão de nulidades os
apredreje, e escarneçam de suas virtudes morais, intelectuais e
artísticas, que os defenestrem por não serem medíocres.

Mas, uma vez refreados meus impulsos revolucionários, começo a
suspeitar que as diversas minorias de diversas especificidades de
medíocres configuram a maioria esmagadora daquilo que se chama
democracia.E, eureka, descubro:de uma maneira torta, os medíocres são
espertos.Nefastamente espertos.

2005-09-14 21:07:00

       
  

Autópsia de um sobrevivo

Parcelo minha morte em prestações a longo prazo
suicídio decantado cotidianamente balanceado
morte que se conduz em cada renovação preterida
morte fragmentada reordenada em perspectiva cubista
 
Brotará deste ajuntamento desvairado um feto renascido
úmido da placenta de um corpo recomposto em ângulos retorcidos
que servirá de alimento inesgotável à memória do que não fui
saciando a fome dos que planejam esboços sólidos de corpos esquartejados
 
Minha morte se produz ontem, quando decido continuar
Meu corpo em movimento é adubo fértil de colheitas vindouras
que revelarão em horizonte promissor
a reedificação de uma vida fragmentada
redimida em negociações excusas
entre minha sombra e meu cadáver duvidoso
 
Morro vivo ressuscito ontem hoje amanhã
Meu tempo é sempre
Ou nunca, se preferirem
 
O cadafalso é que me ergue na descida
onde finalmente sorri minha autópsia viva e pulsante.

  

2005-09-09 15:54:00

       
  

De mitos, cegos, carrascos, gigantes e anões

Lula e Severino, os dois nomes de
maior poder hoje no país têm lá suas semelhanças indeléveis;simplórios,
espertos, prosaicos, ambos com cara de povo, no sentido mais
iconográfico do termo.Ambos circunstancialmente enredados em denúncias
de corrupção.Severino já está no cadafalso por uma propina;Lula está
sendo poupado por ter comandado-sem saber, dizem os tolerantes de
coração-o maior saque ao estado da história da república.

Aqui fica registrado o meu protesto pela 
injustiça contra Severino.Se o negócio é perdoar, fazer ouvidos
moucos, porque só ele leva na cabeça enquanto Lula posa de autista
inocente?E respondo: simples.Já dizia o grande ídolo das esquerdas
Stálin que o assassinato de um só é uma tragédia, já o assassinato de
milhões é só estatística.A coisa funciona assim também com
roubo.Severino vai para a forca por ter roubado uma galinha
enquanto o choque com a dimensão da extorsão do governo Lula é tão
avassalador que uma espécie de catarse paralisa qualquer movimento de
degola ao blindado presidente.

Gente precisa de mitos, de heróis, senão não vive
,apenas sobrevive.E mitificar é fácil.Já desmitificar é a coisa mais
dolorosa que pode haver.Este é o verdadeiro significado da blindagem do
presidente.Custa a acreditar na ignomínia comprovada de quem outrora
simbolizou as esperanças de todo um país.Certo que só um cego não
desconfiaria de imediato de todo o processo de mitificação do nosso Luis
Inácio.Mas o fato é que este é um país de cegueira atávica e
inarredável.O Brasil é um país de evasivas, de fuga de contextos.Um país
que pára durante um mês inteiro para assistir a uma copa do mundo de
futebol não tem nenhum pudor de parar quatro anos para assistir em
estado catatônico o desfile de um mito toscamente fabricado.E ainda tem a
desfaçatez moral de se perguntar Hamletianamente se de fato valeu a
pena votar no dito cujo.

Não adianta.Seria oportuno dizer que o Brasil
precisaria de um divã;um povo apalermado, hipnotizado por um presidente
que se finge de autista;mas seria muita psicanálise para um primarismo
de coronelismo nordestino(ainda que seja coronelismo de sindicato).O que
este país precisa mesmo é de surra de rabo de tatu, bem aos moldes do
mediavalismo dos confins do sertão do qual Lula finge se identifcar.

É preciso arrancar a fórceps uma ilusão entranhada na
percepção dos brasileiros.Impressionante que um país com mais de
quinhentos anos ainda acredite em salvador da pátria;que ainda acredite
em conto de fadas político.Mas quem se habilitaria a ser o carrasco
epifânico e necessário a dar as chibatadas no couro dos
tupiniquins?Aqui, todos temos tendência para escravos, não para
feitores.

Sim , porque este estado de apalermamento profundo e voluntário só se
arranca na cacetada mesmo.Não há estimulante que faça o gigante se
levantar e cessar com esta coisa de se deitar eternamente em berço
esplêndido.Ainda se fosse esplêndido, vá lá…O duro mesmo é perceber
que quem embala o berço do gigante é um anão calçado de salto carrapeta
para esconder a estatura ínfima.Mas o gigante acredita.Claro, ele não
olha para baixo.Só sente a verdade dos fatos quando se espatifa no chão.

  

2005-09-05 01:44:00

       
  

Desconstruindo a desconstrução

Que teoria do caos que nada.O mundo é
certinho, ordenadinho,redondinho, quase lógico mesmo.Tudo é de um
elementarismo primário.Se você nasce, vive , morre e pensa, então há uma
certa ordem intrínseca a todo este processo, não? Tenho dó moral e
intelectual dos pobres coitados que acreditam pura e simplesmente no
acaso.Nasceram, vivem e pensam por acaso, pobrezinhos.Não seria de todo
mal que os que não acreditam em acaso acreditassem piamente que os
que acreditam são pura e simplesmente obra de um descuido mesmo, de uma
irrelevância atemporal sem planejamento.Não seria de todo mal, mas seria
falso e um tantinho cruel.E todos nós temos bom coração, claro, e
toleramos, não por acaso, os desatinos intelectualóides alheios.

Mas o fato é que há ordem em tudo.E não adianta vir
com argumentos desconstrutivistas, porque o próprio desconstrutivismo
brotou de um ordenamento lógico do pensamento, o que desconstrói a
própria idéia de desconstrução, ora bolas.Ah, longe de mim querer
desmerecer um certo relativismo de valores morais, éticos , estruturais
mesmo.Isto tudo teve lá sua valia no século passado.Mas, caríssimos,
todo o método de relativização e desconstrução pressupõe, ainda que
implicitamente, a construção de algo no lugar, nem que seja o avesso do
que tenha sido desconstruído ou mesmo a construção de um vazio, de coisa
nenhuma.Sim sim senhores, a mais elaborada construção é aquela que
propõe o nada absoluto como equação básica da vida, aquela que prova que
eu, você e tantos outros não existimos, que somos esboços do que não
viria ou não virá a ser.A moda, aliás, nas últimas décadas é tentar
provar isto mesmo, que viver é um passeio metafísico, sem a meta e sem o
físico.A questão que refuta tudo isto é que tentar provar que tudo é
etéreo e nulo é em si uma tentativa de ordenar, >

Assim em tudo.Filosofia, arte , ética.Toda tentativa
de iconoclastia denota a edificação de novos ídolos, nem que seja o
ídolo da devoção ao acaso.Não sobrevivemos sem deuses, senhores.A
totemização da própria sombra é destino fatal de cada um de nós.Nos
resta a opção do bom senso de edificarmos tótens palatáveis , úteis e
agradáveis.

Vamos à praxis da coisa por uma maneira enviesada
para não me chamarem de acadêmico empedernido e janotinha:vejam que há
um espíririto moral e ético de ordenamento até na atitude
canalha.Existem organizações criminosas que se comportam segundo rígidas
normas morais que fariam corar os mais probos juízes de direito.Regra
para matar, regra para trair, regra para torturar…tudo que não possa
ferir a honra o respeito das gangues em questão.Disse a máfia, mas
pode-se observar estas mesmas condutas morais em graus diferentes nas
mais diferenciadas tribos de criminosos.Pois bem, se há uma tentativa de
ordenação moral até mesmo em criminosos, que dirão aqueles que dizem
ser tudo obra do acaso, onde residirá o argumento dos apologetas da
estética da coisa nenhuma?

Existe uma matemática intrínseca reveladora da engrenagem humana, sub
humana e sobre humana.Embora tenha um palpite,sei lá eu se esta
matemática é boa ou perversa.E nem me interessa muito saber.Até porque
fui reprovado em matemática na fase dos meus cueiros.Estes assuntos só
me interessam de longe, portanto.Minha desconfiança mesmo é de que
Descartes, de uma maneira meio torta, no fundo tenha razão:de que tudo
se resume à razão e método, ainda que este método não seja
necessariamente cartesiano…