Festa
Celebremos o tempo perdido
o hiato lânguido que nos alivia da tentativa
Celebremos a fuga que nos indica
o caminho alentador ao regresso uterino
Celebremos o nada que nos consola de quase tudo:
sono infértil que fertiliza o sonho
Celebremos a dor que nos desvia da inconsciência
cicatriz mal curada que nos desconsola
banhando de fel nossa placenta protetora
Celebremos a mágoa que revigora nossa queda
e nos torna aptos a desmoronar dignamente
Celebremos cada lágrima alcalina que salga nosso sorriso estéril
Celebremos a pausa de um prazer em perspectiva
ilusão palpável que nos torna entretidos
o suficiente para cultivarmos nossa prudência
Celebremos o esgarçamento da verdade
o corte transversal do fato
a apologia edificante de uma mentira necessária
Celebremos quem nos oprime
aquele que nos torna menos afeitos
ao nosso mesmo caráter opressor
Celebremos a injustiça que nos redime
de nossa defaçatez entranhada
Celebremos nossa estupidez estratificada
que nos cura da pretensão de legibilidade
Celebremos o avesso
que desanuvia o tédio de nosso reflexo
Celebremos de olhos fechados nossa espiral descendente
nossa cegueira inexorável que nos descansa da revelação:
o contrário de uma imagem distorcida que corresponderá
a outro fim sem princípio definido
E antes do descanso, celebremos o cansaço
Celebremos sobretudo o peso insustentável
de nosso corpo em movimento
O mesmo que nos sustenta e nos mantém de pé
Celebremos pois este paradoxo de permanência.