Poema lasso
Poesia
Poema lasso
Sem madeleine
Não tenho saudades de nada nem de
tempo nenhum.Tenho inclusive uma certa inveja daquele sentimento
proustiano de perceber o passado inteiro através do gosto de um biscoito
molhado no chá.Muito sofisticado e lírico e tal, mas os sabores que me
remeteriam a tempos remotos são repetidos ad nauseum, uma vez que, até
hoje, não vou muito além do leite e do suco de laranja.O passado apenas
se descortina diante de mim tal e qual uma possibilidade desperdiçada ou
mal aproveitada.Só me lembro de alguma coisa para em seguida me
arrepender dela.Benditos os mentirosos que dizem que nunca se
arrependeram.Eu me arrependo até de ter nascido às vezes.
Além desta falta de saudosismo e deste arrependimento
permanente, ainda me sobrevêm sentimentos mesquinhos de vingança
póstuma.Por exemplo, minha primeira paixão de adolescente com quem
troquei(ou partilhei?) meu primeiro beijo.Tudo muito bonitinho até ela
me trair com um primo meu.Pois bem.Qual não foi minha agradável surpresa
ao vê-la, anos depois, balofa com dois filhos horrendos passeando pela
cidade e o tal primo infame, por sua vez., casado com uma senhorita tão
cafona e horrenda que faria Yoko Ono saltitar de vaidade.
O passado sempre me vem retalhado de erros, confusões
, incompreensões.Quanto mais longínqua minha memória, mais forte a
impressão de que eu me comportava como idiota.Pior:a impressão-mais
terrível ainda- de que eu me dava com e admirava gente que hoje
considero patética.Tenho, por exemplo, e ao contrário de noventa por
cento da humanidade, pânico, pavor e horror da minha infância.A
dependência intelectual é a pior das prisões possíveis.Toda criança é ,
por definição, uma imbecil prisioneira de seus tutores.E a fase
seguinte, a adolescência, consegue ser ainda pior.Não tendo suficiente
estrutura intelectual para se perceber dentro do mundo e achando que já
tem esta estrutura, o adolescente parece uma gelatina, um amálgama de
posições conflitantes que já se julga ciente de si.Todo adolescente é um
coitado chato ou alguém que, por excesso ou falta de opiniões, nunca
sabe o que dizer ou sempre diz o que não devia no momento errado.Tudo
isto sem contar as espinhas e as roupas pavorosas.
Gosto mais um tiquinho de quem eu sou hoje em dia.Mas talvez seja
ilusão.Possivelmente daqui a alguns anos ,me julgarei tão imbecil quanto
agora julgo quem eu fui no passado.Bem, mas isto é preocupação do
futuro.Já bastam o presente e o passado para me atormentarem.
Palpite aos palpiteiros
Nada melhor que dar palpite sobre
assuntos que não se entende muito.A rigor, em uma escala mais
abrangente, ninguém( nem mesmo os especialistas) entende muito do
que está falando.A mais rigor ainda, aliás, principalmente os
especialistas, porque estes tendem a discorrer sobre uma parcela do todo
com propriedade, se desfazendo do conjunto do todo.Um problema
mais metafísico que sociológico de nossos tempos:a especialização.Melhor
os generalistas, que dão uma pitada aqui , outra acolá, e que, na
mistureba dos compartimentos, dão alguma contribuiução para a
engrenagem.(Montaigne, por exemplo, era um palpiteiro de mão-e boca-
cheia).
Mas cuidado:Não confundir com o palpiteiro de ocasião
e ignorantão, que fala de tudo sem dizer nada.Se na teoria fica difícil
especificar o dito cujo, lá vai um exemplo prático e humano, o ditoso
presidente Lula, que fala muito e não diz nada.
A coisa das opiniões a torto e a direito vai além:nas
últimas décadas, com o espalho geral da democracia, todo muito teve
direito à voz.Muito bonitinho na essência e tal, mas na prática, o
negócio tem seus reveses.É muito idiota querendo dar pitaco em tudo que é
questão.E pior:alguns destes são ouvidos por zilhões de outros idiotas
que aderem à idiotice proclamada de uma qualquer opinião idiota,
formando um tenebroso exército de mentecaptos unidos.
Mais sutil e mais perigoso ainda: assim como não
existe sabedoria plena, também não há idiotice absoluta, e há mesmo
inúmeras pessoas respeitáveis, inteligentes mesmo, que são capazes de
cometer e dizer as mais estrambóticas asneiras.É o que chamo de
imbecilidade localizada. Mais ou menos como Chico Buarque e Ezra Pound
falando de política, invadindo setores em que não são(para fazer um
eufemismo gigantesco) exatamente ‘’experts’’.
E esta voz imbecilmente localizada de gente inteligente e talentosa é
ouvida e seguida como mantra por um monte de aduladores que não sabem
pensar por conta própria.E daí vem o paradoxo:a necessidade de uma certa
especialização, pelo menos no que tange ao palpite público.Artistas
deveriam apenas falar sobre arte? Economistas deveriam falar apenas
sobre economia? Não, claro, mas um pouco de bom senso ajuda na hora de
se discorrer sobre o que não se sabe muito.Pelo menos que se fale
baixinho.Uma idiotice cochichada é menos danosa que uma soprada aos
quatro ventos.O Chico(Buarque) por exemplo, faria um grande favor à
política brasileira se apenas compusesse e cantasse.
Louvor
Custos e benefícios temporais de uma paixão
Tempos atrás li na revista Time que a
paixão durava em média uns quatro anos;agora me chega uma pesquisa
dizendo que um tal hormônio ou substância que nutre a paixão dura um só
minguado ano.Sinal dos tempos em que muito trabalho e pouco espaço para o
lazer não dão canja a sentimentos mais duradouros.Enfim, como se diz o
clichê, troca-se paixão por amor, companheirismo, amizade e estes outros
sentimentos mais comezinhos e bem menos emocionantes, sem prejuízo da
funcionalidade e da estabilidade do indivíduo.
Mas o clichê é de fato superficial e, com excusas da
redundância proposital, clicheresco mesmo.Por companheirismo, pode-se
ler preguiça.Ninguém tem saquitel suficiente para trocar de paixão todo
ano.Até porque se apaixonar é relativamente viável, já tornar-se alvo da
paixão pelo seu objeto de paixão é bem mais complicado.Vejam bem, odiar
é bem mais tranquilo, uma vez que seu ódio independe dos sentimentos da
criatura odiada.Se apaixonar por e amar alguém o torna presa do
objeto amado e aí está a nhaca estabelecida.Não acredito nem que a vaca
tussa em paixão milimetricamente igual, equânime entre os entes
passionais.Há sempre alguém que ama mais que outro alguém em um casal;há
sempre uma dose de rejeição implícita até em relacionamentos de mútua
afeição.Estabelecer esta assimetria por anos é um fardo meio cansativo,
não? Mas que diabos fazer? Dar uma de poeta romântico e sair à caça
de paixões fulminantes a duas por uma? Virar adepto da misoginia e do
onanismo sentimental?A rigor, as demais opções não necessariamente
comportam melhores resultados do que se entregar à preguiça e aproveitar
delicadamente a assimetria de correspondências amorosas e
sentimentais e a decadência de sentimentos em relação ao
progressivamente nem tanto ente amado.
A garantia é que nunca se concebe bem o tempo desta decadência
natural do sentimento amoroso .Sim, sim, há toda esta história de que,
ao contrário da paixão, o amor é eterno, mas nunca se discutiu a
fundo estas sucessivas metamorfoses porque passam o nobre
sentimento(Amor sem sexo e sem paixão? Não é mais ou menos o que você
sente por sua mãe?…).E se apaixonar e sucessivamente amar dá
trabalho.Manter uma relação em bases sólidas de diálogo;em bases
econômicas;em bases de balanceamento de idiossincrasias e neuroses
conflitantes, é para lá de custoso.E com este imbróglio todo que implica
a manutenção de um sentimento que naturalmente irá decair, por que não
trocar esta garantia de uma suave decadência pelo turbilhão de se
apaixonar sucessivas vezes?Questões de pesos e medidas que vão depender
de cada amador passional.No fundo e na superfície também, tudo é
complicado, até mesmo ficar parado sem fazer nada e não amar nada nem
ninguém ou amar sucessivas vezes.Figura utópica e mais tranquila
mesmo(embora tenha uns relances de tara também) talvez seja o amor
abstrato pela humanidade inteira, como fazem os padres, que não correm o
risco de uma rejeição direta ou da visibilidade a olho nu da decadência
de um sentimento.Mas, como já disse, a figura é utópica e o sentimento é
abstrato, porque o precursor dos abatinados tentou amar a humanidade
inteira de fato e deu no que deu: rejeitado por quase todo mundo
e pregado na cruz.A resposta amorosa e passional a Ele veio
postumamente, ou eternamente, segundo os mais etéreos.Mas nós ,
criaturas mais vulgares, sem aspirações a santidade nem a amor coletivo
preferimos uma coisa mais tête a tête, ainda que a tal coisa vá se
esvaindo aos poucos ou possa ser trabalhosamente renovada de tempos em
tempos.Amar o(a) próximo(a) como a ti mesmo.Sim, mas(no meu caso, ao
menos) amar algumas próximas específicas com maior
vigor, amando uma de cada vez enquanto a coisa dura. Que, no
sentido material do termo, amor coletivo é suruba.