2006-04-25 23:38:00

       
  

A simpatia do fracasso

O sucesso pode fascinar as pessoas
mas o fracasso angaria muito mais simpatia.O primeiro grande e suposto
fracassado da história ocidental é Ele mesmo, o próprio Jesus
Cristo.Ora,segundo os padrões vigentes de sucesso à época(e de agora
também), não se pode chamar exatamente de bem sucedida a trajetória de
alguém traído, abandonado e crucificado pelo seu próprio povo.O sucesso
de Cristo foi justamente o proveito metafísico que tirou de seu suposto
fracasso material , transformando este fracasso em sucesso metafísico.

A verdade é que o fracasso alheio nos é
simpático.Sempre.Quer seja por razões psicológicas, sociais, religiosas,
sempre tendemos a nos projetar com a derrota dos outros, justamente
porque nos inspiram um sentimento de harmonia, de companheirismo
tácito entre derrotados, que obviamente estão sempre em número mais
vantajoso que os bem sucedidos.Mesmo os mais bem sucedidos têm suas
vidas eivadas de pequenas ou grandes perdas.O fracasso é, em menor ou
maior grau, o substantivo mais democraticamente distribuído entre todos
os seres.Por isto esta identificação coletiva com o fracassado. O
fracasso sociabiliza, o sucesso aparta.

O fracasso não é necessariamente epopéico, como o de
Cristo, mas é invariavelmente tragicômico, como a vida em si(que os mais
pessimistas dizem ser O fracasso em si).Senão vejamos:o princípio e a
base de toda a comédia é o fracasso.O humor é oriundo do fracasso.Pode
haver drama em uma história de sucesso ou de derrota, mas o humor jamais
admite o sucesso.Não há graça em um presidente da república que se
elege, em um herói que vence uma batalha ou em alguém que acerta na
loteria. O humor, a graça estão sempre do lado dos derrotados.Não foi à
toa que Dante batizou sua obra prima de ‘’A divina comédia’’ , ou que
Balzac tenha batizado sua série de romances de ‘’A comédia
humana’’.Ambos os autores tratavam, sobretudo, de derrotados.Chaplin e
Woody Allen fizeram de seus tipos únicos e característicos epítomes dos
fracassados.O sucesso de ambos foi extrair o sucesso através da
representação de suas perdas.

Reparem como há uma similitude na caracterização de
todos os fracassados representados pela ficção e pela arte , em geral.Um
exemplo simples:Charlie Brown, o garoto fracassado do desenho homônimo e
George Costanza, o neurastênico derrotado do seriado “Seinfeld’’. Se
fizermos um exercício de projeção não seria muito difícil concluir que
Charlie Brown poderia facilmente ser a representação da infância de
George Costanza.Brown, um garoto azarado, aéreo, subjugado,após os
prováveis traumas de adolescência e juventude, não estaria muito
distante da neurose e dos chiliques de um Costanza em idade adulta.Em
suma, há um certo padrão alegórico nos fracassados
carismáticos, que pode nos remeter àquela velha
idéia-equivocada, a meu ver- de que ‘’todos os homens são um homem
só’’.Equivocada porque , apesar de haver semelhanças enormes entre um
ser humano e outro, há sutis diferenças que justamente definem o que
chamamos de personalidade;sutis diferenças que separam a beleza da
feiúra, a inteligência da ignorância, o sucesso do fracasso. O barro é o
mesmo, mas a formatação varia de acordo com a vasilha.Estas mesmas
sutis diferenças são por vezes tão sutis que quase não percebemos o
quanto pode haver de sucesso em um fracasso.Que o digam Allen, Chaplin,
Costanza, Brown e Cristo, só para citar alguns dos nossos mais caros
‘’fracassados’’.

  

2006-04-17 22:11:00

       
  

Apologia ao Urubu

Urubu se aplica generoso à limpeza dos despojos
Sua fome cidadã se endereça aos dejetos sociais
à limpeza do que olhos não mais ensejam ver
 
Urubu correto incapaz de roubar a vida
se alimenta de fins e desfechos já consumados
não luta pela sobrevivência
antes se nutre de mortes necessárias
 
Ave cristã despojada de ego
seu orgulho é seu probo papel
de remoção dos restos da dor alheia
 
Chama com garbo a feiúra elementar das coisas para si
Apaga os adereços fúnebres do  inconsciente coletivo
Sua presença feérica se produz
pelos olhares desviados
daqueles mesmos que o criaram
Sua presença feérica
é sua ausência nos contos de fadas
 
Urubu segue seu vôo magnífico
levando consigo os desgostos sublimados
digerindo sombras desencantos misérias desilusões
 
Discreto, distante, habitante do esquecimento
Longínquo morador de um paraíso
feito de um rastro de mágoas evacuadas
 
O peso da dor mundana se escora em suas asas
E ele, plácido, voa leve
sem se dar conta de seu papel redentor.

  

2006-04-03 22:01:00

       
  

Das tais afinidades eletivas

Amigos, parentes, amores, animais de
estimação têm lá suas diferenças na escala de afeto, mas são todos
igualmente dependentes de circunstâncias peculiares, quer sejam sociais
ou psicológicas.Há pessoas com quem você trava amizade que eventualmente
possuem características aparentemente detestáveis como arrogância,
pedantismo, caráter frágil, etc.Mas estas mesmas pessoas, de acordo com o
enquadramento e a alocação destas característcas, tornam-se, diante de
seu julgamento, pessoas adoráveis pelos mesmos motivos pelos
quais se poderia detestá-las.O contrário também é
pertinente:pessoas adoráveis com virtudes inumanas de tão boas podem se
tornar justamente aborrecidamente inumanas a certos olhos.

Triste mesmo são os tais conhecidos perpétuos,
aqueles a quem, por eventualidade do destino, estamos às vezes
condenados à eterna companhia.Alguns têm a má sorte de tê-los como
parentes, às vezes até muito próximos.Um tio ou primo cacete, vá lá, mas
imagine um filho ter de conviver com um pai intolerável, coitado, ou
vice versa.A obrigação genética de amor incondicional é uma das maiores
crueldades impostas pela natureza social humana.Uma família deveria ser
escolhida a dedo depois dos dezoito anos de idade.Neste meio tempo,
poderia haver um ‘’rodízio’’ de famílias pelo qual o infante passaria,
dando seu veredito final sobre a mais simpática ao final da turnê.Sou um
sujeito conservador em certos aspectos, mas no que tange a estas coisas
de sangue e parentesco, sou anarquista libertário.Pais também poderiam
renegar ou trocar seus filhos depois de certa idade.Por exemplo, se com
dezesseis anos  o rapazote começar a escutar axé music e pintar o
cabelo de laranja,o pai poderia mandá-lo para uma instituição de
caridade financiada pelo governo baiano ou outra coisa do tipo.Crueldade
que nada.Certeza absoluta que as partes ficariam muito contetes depois
de certo tempo.Este negócio de convivênca salutar com as diferenças é
muito bacana até que apareça um disco de Amado Batista, um livro de
Paulo Coelho ou qualquer coisa do gênero.

Amores, por sua vez, implicam circunstâncias mais
patológicas que as aqui mencionadas amizades.Porque nas amizades, ainda
há uma escolha mais ou menos racional das características que o agradam
em determinada pessoa.No caso de amores e paixões, entram coisas
como apelo sexual , idiossincrasias individuais , levando o sujeito
a muitas vezes se enamorar de uma criatura totalmente estranha aos seus
paradigmas e parâmetros.Não é à toa que o clichê que diz que amor e
ódio se misturam é quase sempre corretíssimo.Também estão aí as paixões
eternamente platônicas ou as que nunca dão certo que não me deixam
mentir.Há um quê de perpétuo masoquismo no ato amoroso, como se houvesse
uma vingança implícita de seu subconsciente contra aquela implicância
com aquele seu parente chato com quem você nunca se deu bem.Há, claro,
os amores corretos, organizados, matizados de acordo com afinidades
específicas.Mas estes não são amores:mais parecem contratos burocráticos
entre funcionários públicos.

Relacionamento saudável mesmo, senhores, é com animais de
estimação.Não te pedem nada e só oferecem amor e afeto em troca.Chega a
ser uma relação tão excessivamente saudável, tão agradável, tão livre de
dissabores, que termina por ser até meio patológica.Talvez por isto
mesmo nunca comprei nenhum cachorro ou pagagaio.Humanos são mais
agradavelmente enfadonhos e difíceis, creio eu.