2006-06-19 22:08:00

       
  

Substituições em um joguinho esquisito

Qualquer tipo de obrigatoriedade me
causa sarna.Desde os tempos idos da mais tenra infância que eu tenho uma
birra hecatômbica de qualquer tipo de imposição.Cheguei mesmo a ser
reprovado na escola por me recusar a estudar aquilo que não me
interessava ou que achava que não dizia respeito aos meus gostos e
habilidades pessoais.Rebeldiazinha púbere? Qual nada, era preguiça
mesmo.Tanta preguiça que eu me recusava até a colar pelo trabalhão que
dava.No mais, infante que era, eu já tinha razão:não me transformei em
químico nem em físico.

Mas este narigão de cera aí em cima é para falar do
meu atual desespero com a overdose impositiva futebolística dos
tupiniquins em época de copa do mundo.O que era sarna na infância agora
toma os ares de uma urticária pesada com brotuejas e tudo o mais. Quem
diabos pode me explicar um país que pára durante um mês para entregar
sua alma e o apêndice a menos de uma dúzia de marmanjos que tentam
enfiar uma pelota em uma rede?(E que me façam os sociólogos o
favor de não responderem a esta minha pergunta porque ela foi
apenas um exercício de retórica para adornar minha antipatia.Por Deus.)

Como no caso de química e física na
minha infância, não odeio o futebol em si.Tenho preguiça dele.A
minha birra é com os passionais de plantão. Jornalistas, filósofos,
motoristas de táxi, lavadeiras, garçons, todo mundo da nação
nambiquara enfim se junta e de repente faz soar um único coro
comum de adoradores e comentadores do esporte bretão.É o ápice da
democracia em seu pior aspecto:a ditadura do gosto médio da maioria.Até
mesmo artistas e intelectuais sucubem à moda.

O futebol de súbito vira uma quitanda de sublimação
coletiva para delírio de Freud na tumba.Um certo amigo meu, que é
 ateu, desconta sua falta de adoração religiosa no culto às
chuteiras dos marmanjos .Não por acaso, eu o considero a metáfora maior
que talvez simbolize as idiossincrasias que formam um todo de uma paixão
coletiva.Afora a religião, que já é um substitutivo(talvez até
necessário) de muita coisa no corolário das neuroses humanas, o futebol
substitui um sem número de carências humanas e sociais:financeira,
afetiva, sexual e patati patatá.Este meu amigo, sujeito culto e
inteligente, conseguiu a proeza de substituir uma substituição por outra
substituição.Sublima ao quadrado e ad infinitum suas carências
metafísicas por uma outra sublimação tamanho família popular.É Freud e
Schopenhauer fazendo a festa em uma pelada no além…

Mas o que me espanta é que o futebol mesmo é um jogo muito parecido
com a vida em si para se tornar um substitutivo feérico da realidade:é
um jogo aborrecido,na maioria das vezes de poucos ápices(gols), em que
não necessariamente sempre o melhor ganha( na vida real, a coisa é
inversamente proporcional) por razões do esquema de regras esquisitas do
próprio jogo em si.Seria o futebol um apelo masoquista sublimador, como
a arte? Sei lá eu.Eu é que não troco uma sinfonia de Beethoven ou uma
peça de Shakespeare por uma partida de Brasil e Croácia com placar de um
a zero.Neurose sublimatória por neurose sublimatória, prefiro as
minhas, mais pedantes e sofisticadas e não impostas pelo senso comum.No
meu time de sublimações, o futebol não entra nem como reserva.


  

2006-06-10 14:44:00

       
  

Horizonte

A cidade se abre como encruzilhada complacente
convidativa em suas esquinas tergiversantes
em sua essência de boca porosa
engolindo seus transeuntes desavisados
 
Como um tumor não descoberto, produz sorrateiramente
a metástase dos seus espelhos coletivos
em reflexo deformado de seus narcisos singulares
sequiosos por uma falsa imagem do que
deixam de ver à sua frente
 
A cidade reflete a si mesma na projeção dos seus habitantes:
seus odores de rotina suas máscaras de concreto
seu plano mal calculado e ultrapassado pelo
progresso das circunstâncias
seu asfalto áspero dando solo
a sonhos desejos e convicções amaciados
pelo conforto estático dos transportes públicos
o trânsito caótico de suas vítimas ávidas pela colisão
 
A cidade sobrevive como geografia humana em perspectiva
ornada de monumentos estéreis de heróis desnecessários
sustentada pelo frágil vértice dos edifícios que miram um céu intangível
 
A cidade se fecha como resposta tácita a uma pergunta estilhaçada
Seus ruídos guturais sua falta de estilo seus cruzamentos enviesados
sua velocidade sem rumo seu grito primitivo e inescrutável
são o sentido lógico e equação exata de sua urbanidade inviolável
 
A cidade pesa sobre seus habitantes
como tentativa atávica e utópica
da construção de um lugar comum
para multidões de um só.

2006-06-02 22:11:00

       
  

Superfícies e profundezas

O Brasil é o paraíso da
superfície.Não à toa grassam entre nossos supostos talentos literários
um sem número de cronistas que agora têm um novo recrudescimento com o
surgimento dos blogs.Figurinhas blasé, dândis que pregam uma atitude
indiferente, ao mesmo tempo irônicos e iconoclastas.

O problema é o balanço entre ironia e
iconoclastia.Uma certa porção de culhões é necessária para se tentar
destruir algo e se tornar de fato um iconoclasta ou coisa do tipo.Por
falta de substância-e de culhões- nossos neo cronistas virtuais carregam
nas doses da ironia, aceitando tacitamente um estado de coisas como
elas são:ruins mesmo, enquanto esta casta privilegiada de escribas
potencialmente usufruiriam de uma visão beatífica da estética
universal.Bah.

Ah, não se enganem:o contrário também existe e é tão
ou mais tedioso quanto o fenômeno dos dândis internéticos.Há também os
frutos da sempre popular e populosa intelligentsia nacional:os filhos da
esquerda festiva.Revolucionários de botequim que vestem camisetas de
che guevara e querem conceber e realizar a revolução socialista nos
dias de hoje.As palavras de ordem são sempre as mesmas:luta contra as
desigualdades, contra a fome , contra a injustiça social e patati
patatá.

Pois bem: o que une este grupos aparentemente tão
diversos? A superficialidade mesma.São todos oriundos(embora os blasé se
finjam por vezes críticos deste viés) da crônica brasileira:esta mania
tupiniquim de tentar embutir teses sociais, metafísicas e filosofias em
uma conversa de mesa de bar.

Você, desconfiado leitor, deve agora estar se
perguntando que diabos este escribinha que vos fala está a meter o
tacape na própria raça.Não seria ele um destes frutos do croniquismo
brasileiro também? Talvez sim, em parte.Mas quem é que disse que esta
mania de superficialidade é necessariamente ruim? Pode ser chata e o é
na maioria das vezes, porque a maior parte dos cronistas crônicos
não tem talento, ou é visceralmente enfadonha mesmo.

O fato é que nada tenho de substancial contra a
superficialidade em si, desde que a dita cuja seja bem arquitetada e
resvale num certo aprofundamento, só para que o leitor não se afogue no
tédio de uma poça rasa de julgamentinhos sem estrutura.E, de resto, a
maioria das profundezas da literatura e mesmo das relações humanas são
em essência superficiais.Talvez profundo mesmo seja o sujeito que saiba
tirar da superfície um extrato do que seria a essência(ou a falta de
essência) da humanidade.Uma leitura mais atenta e acurada de um Proust
ou mesmo de um Shakespeare revela exatamente isto.

Ser superficial na forma e profundo na superfície é
uma equação não muito afeita à maioria das pessoas que escrevem ou
tentam escrever.Por isto mesmo há escritores e pessoas que escrevem.A
questão particular no Brasil é que há gente que intencionalmente quer se
fazer de superficial para ser profundo e consegue exatamente apenas o
primeiro intuito.Em outras palavras:alguém uma vez disse de Oscar Wilde
que quanto mais frívolo ele parecia ser, mais profundo ele era.Alguns
escribinhas tupiniquins, por mais frívolos que parecem , mais frívolos
conseguem ser de fato.