Substituições em um joguinho esquisito
Qualquer tipo de obrigatoriedade me
causa sarna.Desde os tempos idos da mais tenra infância que eu tenho uma
birra hecatômbica de qualquer tipo de imposição.Cheguei mesmo a ser
reprovado na escola por me recusar a estudar aquilo que não me
interessava ou que achava que não dizia respeito aos meus gostos e
habilidades pessoais.Rebeldiazinha púbere? Qual nada, era preguiça
mesmo.Tanta preguiça que eu me recusava até a colar pelo trabalhão que
dava.No mais, infante que era, eu já tinha razão:não me transformei em
químico nem em físico.
Mas este narigão de cera aí em cima é para falar do
meu atual desespero com a overdose impositiva futebolística dos
tupiniquins em época de copa do mundo.O que era sarna na infância agora
toma os ares de uma urticária pesada com brotuejas e tudo o mais. Quem
diabos pode me explicar um país que pára durante um mês para entregar
sua alma e o apêndice a menos de uma dúzia de marmanjos que tentam
enfiar uma pelota em uma rede?(E que me façam os sociólogos o
favor de não responderem a esta minha pergunta porque ela foi
apenas um exercício de retórica para adornar minha antipatia.Por Deus.)
Como no caso de química e física na
minha infância, não odeio o futebol em si.Tenho preguiça dele.A
minha birra é com os passionais de plantão. Jornalistas, filósofos,
motoristas de táxi, lavadeiras, garçons, todo mundo da nação
nambiquara enfim se junta e de repente faz soar um único coro
comum de adoradores e comentadores do esporte bretão.É o ápice da
democracia em seu pior aspecto:a ditadura do gosto médio da maioria.Até
mesmo artistas e intelectuais sucubem à moda.
O futebol de súbito vira uma quitanda de sublimação
coletiva para delírio de Freud na tumba.Um certo amigo meu, que é
ateu, desconta sua falta de adoração religiosa no culto às
chuteiras dos marmanjos .Não por acaso, eu o considero a metáfora maior
que talvez simbolize as idiossincrasias que formam um todo de uma paixão
coletiva.Afora a religião, que já é um substitutivo(talvez até
necessário) de muita coisa no corolário das neuroses humanas, o futebol
substitui um sem número de carências humanas e sociais:financeira,
afetiva, sexual e patati patatá.Este meu amigo, sujeito culto e
inteligente, conseguiu a proeza de substituir uma substituição por outra
substituição.Sublima ao quadrado e ad infinitum suas carências
metafísicas por uma outra sublimação tamanho família popular.É Freud e
Schopenhauer fazendo a festa em uma pelada no além…
Mas o que me espanta é que o futebol mesmo é um jogo muito parecido
com a vida em si para se tornar um substitutivo feérico da realidade:é
um jogo aborrecido,na maioria das vezes de poucos ápices(gols), em que
não necessariamente sempre o melhor ganha( na vida real, a coisa é
inversamente proporcional) por razões do esquema de regras esquisitas do
próprio jogo em si.Seria o futebol um apelo masoquista sublimador, como
a arte? Sei lá eu.Eu é que não troco uma sinfonia de Beethoven ou uma
peça de Shakespeare por uma partida de Brasil e Croácia com placar de um
a zero.Neurose sublimatória por neurose sublimatória, prefiro as
minhas, mais pedantes e sofisticadas e não impostas pelo senso comum.No
meu time de sublimações, o futebol não entra nem como reserva.