2006-07-22 18:51:00

       
  

Gênese

O filho do homem Cria divina filho de Deus pai
que gerou a mãe que concebeu o filho
que também é pai e fruto de si mesmo e de todos nós
 
Rebentos de tão puro e sacrossanto incesto
tateamos inseguros a placenta que nos cobre.

2006-07-18 14:18:00

       
  

Álbum

Reinvento a memória para caber no presente
Sou a sombra tátil de um tempo incerto
presa escaneada de uma foto ainda não revelada
ou talvez nem mesmo acontecida
 
Quando o passado brotar, despejarei os sonhos póstumos
na alvorada do meu recolhimento
Florescerá deste amontoado de recortes transversais
um álbum caótico de famílias que me povoaram
de imagens esparsas que compuseram meu rosto desfocado
de nomes trabalhosamente esquecidos
e fragmentos de um corpo fugidio
com as devidas dores e outros prazeres
nos membros amputados
 
Instantes antevistos rasgados antes da revelação:
da fogueira atemporal, cinzas das cinzas
que caíram por terra germinando outros frutos
outras ficções e semi verdades eternizadas
em ensaio permanente de fotos sobrepostas.
 

2006-07-06 12:29:00

       
  

Tudo é da minha conta

Discrição é um mito.Porcamente
fabricado.Manipulado por gentinha sem grandes ambições de espírito e
escassos de virtudes.Ora, se, como dizem os gnósticos, tudo é
manifestação divina, ou, como dizem os ”quânticos”, toda a matéria se
coaduna, então tudo é da minha conta,desde a derrota de Napoleão em
Waterloo ao problema de ejaculação precoce de um vizinho.Todos os
assuntos, todas as pequenezas, grandezas, minudências , particularidades
da vida alheia são do meu interesse.E quem é que vai mensurar aquilo
que é ou não do interesse coletivo? Um indivíduo? O Senso comum? Prefiro
meu próprio escrutínio, me basear em minhas idiossincrasias a
confiar nas idiossincrasias pseudo-normais do populacho que faz
apologia ao ‘’apelo universal’’’.Prefiro o meu universozinho particular,
uma vez que o Joseph Campbell já dizia que o universo conspira a
meu favor.

Me transformei em jornalista para isto mesmo:para dar
uns ares de sofisticação à minha mania obsessiva de revirar aquilo
que os socialmente corretos dizem não me dizer respeito.Mas até no
jornalismo descobri , para meu desgosto, regrinhas éticas elementares do
”zé povinho do interesse comum”.A questão é que se me dizem que o
negócio não me diz respeito, aí é que eu me interesso mesmo.É de uma
simplicidade freudiana elementar, percebem? A vida sexual alheia, o mau
hálito do meu inimigo, a sarna secreta de um conhecido, a falha dentária
da musa do telejornal, tudo é matéria do meu interesse.Eu, pedante
contumaz, aprendiz de literato, acredito que a base de toda a
literatura, e , por conseguinte, de todas as demais artes, é mesmo o
fuxico, a curiosidade patológica sobre os detalhes sobre tudo e
qualquer coisa que nos cerca.Por que fazer um poema sobre um pôr do
sol ou sobre o canto do bem-te-vi, se se
pode construir uma epopéia sobre a suposta infidelidade da
mulher de Ulisses?A arte é a prova absoluta que só o fuxico e a
indiscrição produzem maravilhas na história da humanidade.Arte discreta é
coisa de árcades pós-enrustidos. Homero já sacava muito bem deste
prazer encantador que é meter o bedelho na vida alheia e ainda
foi bem copiado por Joyce, o fuxiqueiro pós moderno.

A indiscrição tem inclusive um certo mérito de
pesquisa empírica, de desbravamento, de aventura e heroísmo pessoal.Só
um virtuoso de fato tem méritos suficientes para ser um bom fuxiqueiro e
desbaratar o universal naquilo que aparentemente não é da conta de
ninguém,e que, no fim das contas, se transforma nos mais augustos
interesses da arte,e, por conseguinte de novo, da humanidade.Só os
heróis se metem na vida alheia e fuxicam.Os medíocres e comezinhos
espiam discretamente, pisando delicadamente em ovos, para não
perturbarem a vida privada do vizinho broxa.