2013-05-29 12:45:00

       
  

O sangue corre

O sangue corre
nas veias do paciente terminal
em direção ao que não espera
em ritmo ordenado
O sangue escorre
nas mãos do assassino
coagula
no medo da doação
deságua, lívido
na curva da história
e não mancha
os dedos de quem a escreve
O sangue estanca
no cadáver da vítima
que se vinga, imóvel
da circulação sanguínea
desnorteada do tempo
segue
a arritmia de um coração impreciso
(metáfora viva carcomida pela
anêmica pulsação do uso)
De sangue roubado
se alimentam vampiros imaginados
e reais imaginários desumanizados
No sangue
e em outros líquidos contaminados
sobrevivem
vírus parasitários
e outros sobrevivos condenados
De sangue
se enche uma ereção
eivada de excitação
ou da fome de desejo
fabricada
por uma química ação
Sem estímulos
-reais ou forjados-
pelos vasos capilares
dilatados da sede
não corre o sangue
Assim o sangue jorra
nas veias abertas
do vivo suicida
e para, eternizado
no fluxo contínuo de
quem sobrevive à intenção.

2013-05-20 13:51:00

       
  

Valores

 

Quando muito, algo
quando nada, algo mais:
algo que se perde e ganha
no caminho da entrega
que se furta ao seu destino
Algo que se extravia
na troca da intenção e do acaso:
um corpo, um móvel, uma fala, um afeto
Quando tanto, a remuneração
do prejuízo calculado
pelo produto que se escamoteia
no desejo do comprador:
mais valia tácita
de um vazio que se esconde
no fetiche de seu preenchimento
Vazio que se vende
no fundo de sua garantia
garantia que se aplica
no fundo de sua incerteza
Onde o vazio?
Onde o nada,
esta moeda abstrata
que se negocia
pelo preço de tudo?
Quando tudo,
a compra de bens imediatos
a posse desmedida do que se toca
e não se vê:
uma palavra, opinião, ética,
uma fome:
capital que adorna o desconforto
de se saber escolha ativa e passiva
em mercado sem valores fixos.

 

2013-05-16 06:04:00

       
  

Perdão

 

Me perdoe, por gentil misericórdia,
por algo que não sei se fiz
ou por nada fazer
que não remendasse o não feito
Me perdoe pela misericórdia mesma
esta concórdia que compartilha
nossa mútua miséria
Miséria de nos sabermos
passíveis de perdão
e de secreto gozo
pelo engano reiterado
da mágoa que não se redime
e se imprime
no cálculo compassivo
de nossa doação
Me perdoe por não saber
por onde nos perdoarmos
ainda que este erro
tangível e incalculável
nos una e nos abençoe
em nossa soberba incompreensão.