Bloco

Nenhum crime há de impedir o assassinato do ódio
que se aborta como honra amorosa ao odiado
Morte alguma há de abortar
a gestação de uma criança
-assassina ou santa-
em seu futuro.

Nenhum tempo
futuro passado ou presente
nos desterra do compromisso inadiável
e atemporal com a eternidade.
Nenhuma indiferença resiste ao toque
– carícia ou agressão –
que desnuda a pele do nada.
Nenhum desgosto obstrui o gosto
de lamber o paladar do sabor desconhecido.
Desilusão alguma ilude o sonho palpável
de algo sempre mais do que sonha a lógica
dos afetos impossíveis.
Cegueira alguma
cega a visão de dentro
que tudo enxerga
no que os olhos enganam.
Todo tropeço
desaba ao passo seguinte
da reerguida
de um corpo afeito
à sua queda mais elevada
que cicatriza e sorve seu abismo.
Morte alguma nos cura da vida
esta doença que nos mata e eleva
para aquém de toda proibição
para além de toda promessa.

Toque

Em todo toque, há um muro:
nenhum átomo, nenhum corpo
a outro se mistura.
Nada ninguém ultrapassa o que toca
nada ninguém compreende o que toca.
Sente-se no que toca
apenas o pressentido da sensibilidade.
Na carícia, o apelo à união
que funda a fusão das diferenças.
Na ausência do toque
ou no toque solitário
de mãos, corpos que se entregam
sem se sentir
a cegueira tátil
que os encobre.
Na agressão, a mágoa
que marca na pele a incompreensão
do que ultrapassa a dor
e funda um caráter
que toca o desejo de se ver além
do que enxerga a cicatriz.
Só se tocam e vão além do que tocam
o pensamento e o sentimento
quando se fundem
no corpo imaterial
de alguma tentativa de amor
que tente tocar
a transcendência do toque.

O cadáver insepulto

O cadáver insepulto anda pela sala
deixa seu rastro indelével pelos cantos, cômodos
passeia pela cidade,marca o país com seu cheiro.
Por se tornar cotidiano,não se faz perceber.
Antes, apodrece os ares com sua pretensa ausência
que se faz presente nas narinas pele corpos
de quem de o já haver entranhado
dele se reveste e se cobre
amaldiçoando o peso
de o carregar e não o ver
abaixo de sua sombra.

O cadáver já mora em nós
que não o matamos
por fingirmos não enxergar a morte diária
que nos absorve a morte diáfana
que encanta – e engana- nossa vida
e cobre de epifania
o desejo de nossa cegueira.

Não matamos o cadáver
por medo de matar a morte que sobrevive em nós
como um placebo que nos cura
da doença miraculosa
da fome de viver
para além de nossa morte
que nos habita provisória
até que ela desencarne de vez
– da nossa criação.