Algum retoque que remende uma imagem
mal colocada ou intenção mal desejada
por falta mesma de um desejo assimilado.
Alguma distorção que repare uma vontade
mal fabricada por ausência de fábrica
ou corpo que invalide personalidade evacuada
por onde o vácuo da ação
não encontre validade
senão no vazio da emoção estratificada.
Alguma resposta que busque
a consequência de uma pergunta
jamais formulada
porque jamais encontrada.
Por que reparo se constrói
a sombra de um alguém
jamais revelado?
Por que construção se move um desejo
jamais tocado?
Nenhum retoque que remende o vazio
jamais encontrado
porque sólido
em sua construção
massificada?
Alguma construção
que encontre uma invenção
que troque o vazio virtual
por alguma realidade
personificada.
Epifania
Teu corpo vai desaparecendo aos poucos
com calma obstinada
que incita um suave desespero
Vou recompondo a imagem desordenada
de tua presença quase ausente
que já se perde na memória
do presente que escapa
e se fixa
como promessa de cicatriz
curada
como promessa de eternidade.
E amo cada vez mais
tocar tua fuga progressiva
como se abraçasse a distância
que chega ao lugar nenhum
onde nunca me encontro
com tua ausência
E deixo cada vez mais de te ver
como se te visse em uma escuridão
que clareasse o turvo da matéria
como se visse o toque
como se te tocasse
com o que a visão não alcança
com o que a palavra não diz
E te enxergo
como poema nunca acabado.
Memória criativa
Esquecer. Lembrar-se de esquecer
Esquecer voluntariamente a mágoa
que revive a cegueira tatuada do instante
a fim de que a cicatriz lembre o futuro
a ser construído
Esquecer como lembrança perene
da possibilidade de libertação do tempo
Esquecer os objetos, corpos, detalhes
que nos desviam do todo
a fim de que a mão
de uma lembrança maior
povoe de perdão
os erros que habitam a escultura
que sobreviverá ao engano
Esquecer. Lembrar-se de esquecer
para que se possa sempre renascer.
Droga
Alguma substância:
pó, matéria, corpo, ideal
aspirado, tocado, sonhado
que revele algum prazer
que crie uma realidade
paralela à realidade já fabricada
pelo irreal de nosso olhar
Alguma realidade artificial
que subverta o real
que já se cria:
Algum trabalho que nos arrede
do tempo arrastado pela circunstância
Algum ócio trabalhoso
que enobreça a atividade
que nos evade do tempo não consumado
Alguma transcendência:
substância amorfa
que nos evada do corpo
preso às circunstâncias
que criam a prisão de sua vontade
Alguma vontade
que nos liberte
da criação da vontade mesma.
Algo de morte
que não se morra em absoluto
Algo de vida
que repouse
no sonho de um despertar
para além do princípio pobre
do prazer
que não resiste ao sono
Algo de êxtase
no sacrifício que abraça
a oferta
sem retorno tátil
e que retorna eternamente
em algum canto que experimenta
este lugar nenhum
que nos cerca.