Preso ao que não fui
percorro a cela da liberdade
de um eterno onde poderia ter sido:
não como um não lugar estático
mas como a pena a que me condeno
de me mover empurrando as grades
com que me cerco
para outra prisão móvel
na tentativa exasperada
de ser mais do que sou.
Cercados pela tortura do que não existe
torturados pela mágoa do que deixou de existir
apanhamos o gesto assassinado na intenção
e nos tocamos
através das grades
com que cercamos
nossa libertação.
Quase:
o nome da condenação
que nos redime
por querer sempre além
do pretenso fracasso
que nos empurra
para a comunhão.

Presos os que creem
ter chegado a um lugar.

Autópsia

Dissecamos assim o cadáver de uma relação:
separamos as partes de sua morte:
as palavras não ditas, as palavras malditas
os gestos não consumados
os gestos esterilizados
por intenções não articuladas
as traições cotidianas
sempre fiéis ao modo torto de amar
que não se ajustam ao objeto sujeito
à criação do amor:
o corpo do amor
sujeito ao seu fim:
o cadáver do amor
ressuscitado
na próxima autópsia.
Dissecamos assim
o cadáver pulsante
de uma amor não consumado
nem na intenção nem na ação:
separamos as partes de sua vida em espera:
as palavras ditas e não compreendidas
as palavras benditas e escondidas
pela insensibilidade dos gestos de consumo
As intenções exasperadas pela esperança
A fidelidade permanente à verdade
que espanta quem a recebe
A traição da verdade
sempre fiel ao desencontro
entre as partes que a enxergam
nunca ao mesmo tempo
nunca ao mesmo modo
nunca ao mesmo desejo
mas
sempre fiéis
ao modo torto de amar
que não se ajustam
ao objeto sujeito
à criação do amor
sujeito ao seu objeto:
o cadáver
sempre ressuscitado
da vontade de sempre amar.
Dissecamos assim o cadáver da morte
assassinada sempre por uma vida em espera.