Um objeto não se vê:
não existe o objeto
a não ser pelos olhos
da consciência que o enxerga.
Não se vê uma pessoa:
apenas se enxerga
pela ilusão de um reflexo
no espelho.
Limita-se o que é visto
ao olhar daquele que o vê.
É concebido ignorado
amado odiado
aquilo ou aquele que é visto
por quem o vê.
Uma visão não se vê
e cega de si
enxerga o reflexo
da quebra
da ilusão do espelho
quando toca a pele
do outro que o vê.
Não há o belo da paisagem
Há o que o limite da visão
refletida
enxerga como beleza.
Mais belo que a paisagem limitada
pelo reflexo da visão que não se enxerga
seria o amor
que supera os limites da paisagem.
Amor: paisagem idealizada
que nos cura da cegueira a olhos vistos.
Mas se vê o amor?

Outros vícios

Há os que preferem vícios lícitos
mas não menos letais:
como Vida, este apego a algo
à falta de outra opção mais clara
Como amor, esta dedicação extenuante
a desgastar seus empregados
cujo salário se desconta quase sempre
em incompreensão e indiferença
e se renova no lucro do gozo
insondavelmente imperecível.
Há quem se entregue ao trabalho,
esta laboriosa diversão de se esquecer
e devorar o tempo
em nome de um valor para além do ócio
de tentar qualquer outro prazer.
Há quem se vicie em verdade,
produto não só escasso
mas nunca puro em sua forma,
droga criada
para anulação de sua criação:
efeito colateral
de sua própria crença,
ou de sua descoberta-
indiferente
a outras variações do produto.
Há os que se viciam na humanidade,
causa perdida que se resgata
na esperança de um caminhar mais junto
em direção ao abismo.
Há os que esperam a esperança,
vício que não se esgota
mesmo com o tempo
que a esmaga e não mata,
a despeito de toda morte.
Há quem em nada se vicie:
para este,
não há remédio ou virtude
que sacie sua falta de apetite.

Selfie

O sorriso tatuado na tentativa de alegria
se projeta na foto da imagem congelada
de uma intenção que se eterniza apenas
na intenção de uma alegria.
O sorriso fotografado
esconde sua intenção
do que sequer sabe do que se ri
e se revela como tortura alegre
aos que se riem da foto
ou se comovem – ou sequer se movem-
pelo sorriso
que não é o deles
sequer mesmo
é o de quem ri na imagem
agora sequer rasgada
pelo virtual que não se toca:
virtualidade eternizada
O sorriso na foto
chora ao tentar se eternizar
como alegria fabricada
e se tortura
pelo direito de mentir sua satisfação
até que o fotografado
se convença da mentira
que cobre a imagem projetada
de sua felicidade congelada
na foto que impede
o movimento de sua intenção.
O sorriso fotografado
parece
e no parecer
perece
em ação projetada.
O fotógrafo da selfie
não sorri
de seu sorriso
que não ri
(Toda própria imagem, um registro morto
de uma eternidade idealizada)
Utopia fotografada:
o fotógrafo se desola e se descola
e olha enfim no outro
a sombra de sua imagem revelada.

Presságio

Uma brisa acalenta a violência do desejo
embala o norte do desespero compassado
da espera do precipício:
sentidos voam, objetos somem,
miopias se enxergam.
O tempo desmorona
foge de seu rumo.
Por certo, o mergulho heroico
no equívoco
que purgará o acerto estéril.
Uma brisa violenta
a erupção do desejo:
nenhum vulcão à vista.
Apenas a lava humana
de seu vivo enterro.

O que me falta

O que me falta não me basta:
o que me falta
sustenta a fome
de abocanhar a ausência
de sorver o que me rejeita
de agarrar meu abandono
até lapidar a escultura
que revele
a falta que me alimenta.
O que me falta não me basta
O que me basta me torna falta
O que me falta
está aquém do que quero
que é enraizar a falta
no feto
do que me sobra:
meu vazio
que espia tudo
que o envolve
questiona
– e nega.
O que me falta não se olha
desprezando o monumento
que dele ergui.
Eu sou o vômito fecundo
do que me falta
sou a ausência tátil
do que me falta.