Poema cansativo

Chega a hora em que tudo cansa
e cansa mais o cansar-se de tudo
e nem descansar-se
do que nem mais se sabe cansar-se adianta.

Chega um tempo
em que nem nada fazer adianta
que o ato provisório sem descanso
é um mantra
porque o tempo nunca descansa

Não chega o descanso
nem mesmo
a quem tudo pensa que alcança
porque tudo foge
à sombra do querer
de sua lembrança.

Chega a hora sem hora
em que o ato lhe é atado
mesmo por erro trespassado.

Foge o erro
à esperança
que esta plena se desespera
e atravessa a própria espera
que nunca alcança.

Chega agora um depois
em que nada mais cansa
em que tudo é esperança
de se agir
no futuro da lembrança.

solução

Misturar-se
fundir-se a algo
ou alguém
a fim
de anular-se
a tediosa certeza
de saber-se

combater o combate
que se cria:
reconhecer a coragem
da própria covardia.

Penetrar-se
rasgar-se
em praça pública
para intimamente
submeter-se
à própria tirania.

Matar o que é vivo
para alimentar-se
alimentar a morte
para devorar-se

Matar-se
no outro
vivamente
como
que acaricando
a agressão
que deseja dar-se

Criar-se
perder-se por algo
ou alguém
a fim
de viver-se
a esplendorosa dúvida
de saber-se.

Noite no sofá

A voz da personagem da novela cafona
embala o sono de um personagem real
de uma elaborada solidão
construída a desabamentos
milimetricamente orquestrados
pelo dramaturgo que a povoa
na plenitude do despovoamento
do sofá de sua sala.
A marcação para o drama silencioso
traz personagens abstratos
que povoam o abandono:
a noite que se veste de hiato
que dá as mãos ao passado tão presente
ao passado nem sempre ocorrido
e tão sólido
em presente que se desfaz, líquido
que jorra no desperdício das horas
palavras e gestos
que compõem a muralha aberta da sala
onde uma personagem cafona
de uma novela cafona
beija a boca
despovoada
do dramaturgo sonolento
que sonha dramas reais
na sala esvaziada.
O dramaturgo sai da sala
se banha se veste
se reveste da rua
dos espaços que abrigam
os dramas que esperam
os personagens que acontecerão
que dão as mãos
aos que se foram
ou desaconteceram
antes de entrar em cena
e no futuro que o espera
no palco sempre habitado
do sono semidesperto
do personagem da sala esvaziada.

Dinheiro

Dinheiro:
nosso deus maldito e impalpável
a vós prestamos reverência
nos ajoelhamos , negamos e vos recebemos
qual valor supremo
e inquestionável.
Vós, dinheiro, sois como a alma:
criação de valor sem tato
valor à vida que se consome
e materializa nossa posse:
garantia do uso simbólico
do que inexiste,
criando medida de troca
de bens sem valor absoluto
criando nossa falta.
Vós, dinheiro, valorizais
a humana invenção
do deus que se cria
à imagem e semelhança
de sua imperfeita criação.
Dinheiro:
valor impalpável
que agrega todas as crenças:
Por ele para ele
todos os caminhos
que levam à realização
da realidade criada
da alegria que se consome
a crédito debitado
em moeda variada:
ouro, prata, bronze
concha
promessa
amor
palavra
Nota promissória
de intenção idealizada.