O real

O céu mente sua imagem real:
estrelas mortas, astros não nascidos
esperam pela luz que não chega a tempo
aos nossos olhos
que também nos mentem
a matéria vista:
os limites da nossa visão
enxergam a beleza do rosto
que não se desfigura nos póros abertos
cicatrizados pela generosidade
de nossa cegueira.
O que olhamos nos olhos alheios
é o ideal virtual
de como queremos ser vistos.
O verde da grama sintética
apascenta os nossos pés
que sentem a natureza
de uma humana invenção.
O sabor do fogo
alimenta o gosto
da besta cozida
pela real civilização.
O calor do sol
em nada se compara
ao afeto fabricado
de uma amena calefação.
A vida cria sua imagem irreal:
paisagens mortas, corpos não nascidos,
crias não vividas
não esperam pela luz que atravessa o tempo
a olhos vistos
que também olham
para além do que cria
nossa mesma imaginação.

Por dizer a um amigo

Não houve silêncio suficiente entre nós.
Não houve a distância necessária
que tornasse possível
a visão próxima um do outro.
Não houve a distância necessária
que nos aproximasse.
Não houve distância
que desaproximasse a colisão do afeto
que se arrebenta na palavra inexata
que não exprime
a didática difusa do amor
que veste a roupa desalinhada
da posse do amigo
que vai se afastando
na expressão descosturada
da perda do amor que nos reveste.
Não houve palavra suficiente para nós
que não perdesse a posse do silêncio
que grita o que palavra não conseguirá dizer
do sentimento que a verbaliza
e sufoca na intenção.
Há ainda e sempre
entre nós
o aperto de mão não consumado
eternizado na distância
que nos caminha.

Agora antecipado

A eterna mordida na fome da maçã
tem mais sabor
que o gosto da fruta
que se consome
na boca breve
que engole
a espera do prazer.
O beijo adiado
saboreia a volúpia
da fome de sua espera
que se esgota
na morte provisória
que aguarda seu encontro.
A morte devora
aos poucos
um corpo que a abriga:
um corpo
que come vida em espera
pela fome de algo além
que saboreia a dor
que a conserva
eterna.

Caim

Nada havendo
nada se bastando
cria-se algo
cria-se o desejo de algo
cria-se a imitação
do desejo de algo.
Nada havendo
tudo se cria
pela comunhão por algo.
Nada se bastando
tudo transbordando
cria-se a morte por algo
Cria-se o filho
Cria-se o irmão
a quem se mata
pela criação de algo
cria-se a morte do desejo
que recriado
transborda
pela sede de algo mais
Cria-se
para além da morte
na fome do desejo
o molde de um deus que se cria
para a criação de um tudo
que não se basta
para a criação de alguém
e que enxerga para si
algo além
de sua fome.
Tudo havendo
nada se bastando
no sangue transbordado
crê-se em algo
para além
do desejo de algo
Crê-se na mão
do assassinado
que se estende e toca
na esperança
do irmão ressuscitado.