Uma infâmia lânguida e furtiva
percorre a pele do elogio que lhe faço
como um soco que acaricia a carícia
em que lhe afago.
Já não prezo o que lhe quero
não mais amo o que desejo.
Aninho em mim
aninho em nós
um cupim
que devora o afeto
que em palavra enalteço.
Resta este gesto mecânico de gostar
como um reaprendizado eterno
do que se perdeu
e jamais retorna
por esgotamento de começo.
Outras palavras, outras pessoas
outros filhos, outros tempos
outras pontes
circunvagam à margem do precipício
que nos fazem andar
rumo à invenção do caminho
que nos percorre o tropeço.
Vamos de mãos dadas,
pronunciando cada palavra
do silêncio
que engole nossa falha de diálogo
Vamos de palavra atada
sussurrando para dentro
a criação
de nossa mais nobre intenção.
Nascemos
Nascemos
Nascemos
no filho em que crescemos
ou indefinidamente
na espera pelo filho
que jamais teremos.
Nascemos na perda do pai
em que morremos.
Nascemos na traição do amigo
em que nos enterramos
ressuscitando no perdão
que rompe o hímen
do que vivemos.
Nascemos ainda
na memória criada
do pai , amigo, filho
que talvez jamais conhecemos.
Nascemos na ausência tátil
de uma perda
que tatua na carne da história
o passado em que estamos.
Nascemos sempre
na agonia deste eterno presente
que em vão matamos.
Nascemos na palavra viva e furtiva
que nos criamos
E na boca porosa em que nos dizemos
E na ação difusa
que nos enganamos:
nasce
onde jaz sempre vivo
o que nunca entendemos.
Não importa:
nascemos mais onde não nos sabemos:
no gesto de afeto que não merecemos
a contragosto à vida nos empurrando.
Nascemos sobretudo
na cega oferta de amor
em que nos perdemos.
Indiferença
Nenhum grito ecoa tanto
aos nossos ouvidos
quanto aquele silencioso
que zumbia à nossa surdez voluntária
que berrava à nossa mudez ordinária:
o grito da criança morta
por nossa cegueira abusiva
o grito da ajuda voluntária
calado
por nossa consciência tranquila
o grito da miséria viva
por nossa ausência
amortecida
pela voz do pior suicida
que cala sua humanidade
ainda em vida
Gratuidade
Há uma desrazão fundamental
no abraço permanente que uma mãe
oferece ao filho assassino:
como se ela gerasse o filho
permanentemente
a fim de lhe restituir gratuitamente
a vida que ele nega
quando a arrancou de outro.
Há no amor irracional da mãe
ao filho assassino
a geração do Deus
que criamos
e que se doa eternamente
à negação de nossa morte.
Há no abraço da mãe
ao filho assassino
a desrazão fundamental
que nos gera a vida.
O infinito
É pequena a vastidão do universo
diante do afeto de dois olhos que veem
sua mínima parte do infinito
em outros dois olhos que amam
e que enxergam o horizonte de um fim
que não se acaba
É mínimo o horizonte eterno do tempo
diante da mortalidade humana
que tatua no instante
a breve eternidade do toque
a quem ama
É vazio o infinito
que não se pensa
não se toca
e não ama.
Tempo
Passo pela rua em que nasci.
Rua mudada cuja mudança
muda meu passado reinventado
Nada me lembro que não recrie
ou confunda
na memória em que me invento.
A arquitetura moderna de rua hoje
habita a ruína da lembrança
de meu futuro transfigurado.
Rua deserta na madrugada
onde agora nada passa
em companhia da memória
de muitos que passaram e passarão
para desassossego da impermanência
de um presente sossegado.
Antes da rua deserta em que nasci
a sombra lembrada da imortalidade
para antes de mim:
nascer não é passado:
nascer é para sempre estar
ao presente atado, todo o tempo
furtivamente atormentado.
Anjo baixo
Há um anjo que aninho
e que me tenta
com a ternura de um diabo:
um anjo que me segreda traumas invisíveis
que temperam a frescura do rancor
a um inimigo a quem ignoro e abraço
com a complacência a um amor que odeio.
Há um anjo ruim em mim
que esmago sempre
com delicadeza
a fim de não matá-lo completamente
porque também ele me sustenta
com seus olhos belos como chifres
que espetam minha fome de verdade
com o sussurro do engano em que me rio
do ódio a tudo que não vejo
e me acalenta.
Há no riso do meu cego ódio
este amor que me inventa.
Neste anjo, uma indignação
surda a seu propósito
cria a ação de sua demolição
e recorrente ressurreição.
Este anjo me sobrevoa por baixo
a fim de que eu me eleve
acima da bondade trevosa
em que desabo.
Moldes de eternidade
Há vários modos de fabricar eternidade.
Uma múmia eterniza a hora de sua morte
legando aos vivos o registro embalsamado de seu corpo.
Um Botox ou silicone eternizam o desejo de beleza
registrando a morte da perecibilidade da carne.
Uma foto retém o voo de um pássaro,
engaiolando seu movimento no registro
de imagem idealizada.
Uma memória eterniza o voo do pássaro
recriando seu voo para além
do registro engaiolado do ato.
Uma ruína se eterniza pela arquitetura
que jamais desmorona
no registro da história que a ergue.
O sorriso de quem se ama se eterniza
como arquitetura que jamais se desmorona
no registro da história que o ergue.
Um fogo se alimenta pela brasa que o alimenta
na fogueira que alimenta sua chama
que revive no calor da cinza da madeira que consumiu.
Um amor ou ódio ou intenção afetiva ou intenção ideal
se recriam no tempo
como arquitetura reconstruída
de uma ação permanente
que erguem um palácio que jamais desmorona
na ação afetiva que o reerguem
eternamente
pela chama alimentada
da memória do agora,
que voa, com o esforço exaustivo
de suas asas
para além do registro engaiolado
da morte do momento
jamais mumificado.
Amo
Amo todas as aparências
com pavor amoroso
às pretensas evidências.
Amo, desconfiado do meu amor
à substância
e odiando a desconfiança
que me impede de tocar o fundo
do que no fundo não quero achar.
Amo as aparências
porque todas as substâncias
revelam sua falta de fundo
ao toque do olhar
que revela
o fundo do meu engano.
Amo meu engano
porque ele me impede
do amor ao dessentimento da certeza
que me impele
a uma devoção vertical
que me impede
de me derramar no horizonte
onde me perco de tanto amor enviesado.
Amo, desconfiado,
a paisagem árida da pobreza
que não se dá ao amor.
Amo, mesmo entediado
a beleza óbvia
que se desconfia
enquanto utopia do avesso.
Amo sobretudo o falso conceito de um nada
que se esgota em sua definição.
Amo a invenção precária
que contorna
toda criação turva
que ilumina
a sombra esquiva de amar.