Anti-espanto

O céu não me maravilha
com seu azul resultado de luzes
que se comprimem numa única cor tediosa.
Me entediam as estrelas noturnas
já mortas pela demora da velocidade da luz
que as inventa num presente sempre passado.
Tampouco me alenta mais a brisa da madrugada
que o ar condicionado
que assopra inspiração
do leito lírico do meu quarto
centro dos lugares frios onde não repouso.
A rosa resplandescente que implora por adoração
entedia minha contemplação
que só se encanta na brevidade
do apelo desesperado de sua beleza-
que murcha na visão de uma vaidade estática.
Me encantam outros enganos desnaturados da natureza:
a falsa promessa de um afeto eterno que não murcha
no ideal que jamais se consuma
nascido póstumo em seu engano;
o céu pintado pela miopia do artista
que aumenta as estrelas mortas
ressuscitando seu engodo para um apelo de vida
que jorra nas tintas da criação de um equívoco mais lírico;
a febre que arranca o conforto do clima que apascenta
a luz estéril de uma saúde que calcula os instantes do meu tédio;
o espinho da beleza óbvia e tediosa da rosa que arranca do meu sangue
um vermelho mais vivo, lânguido e permanente
que escorre da minha precariedade em eterno botão.

Não colho da natureza
qualquer espanto que desnature
minha invenção em prosa filistina.
Não agradeço pela vida
a não ser pelo esboço
de algo mais que ela não ensina.

Indo

A cada dia o sol se levanta
e cumpre sua função
sem nada saber da intenção
que o abriga.
A cada instante uma mosca
gira em torno da luz
sem saber da iminente
morte que a habita.
Um leão mata um cervo
para saciar a fome de sua natureza
sem laivos de crueldade:
cumpre sua função
na cadeia natural
que o limita.
Só você, bicho estranho
se alimenta da incerteza
da razão de se levantar
para um novo dia
que gira em torno da morte
que o incita à vida
que mata seu desejo de matar
em nome da cadeia da razão
que o liberta e tramita
pelas leis colocadas
pela criação e superação
da tua natureza volátil,
avessa tantas vezes
à tua vontade
que nunca obedece
a um desejo tão confundido
quase desaparecido
na sua recorrente recriação.
Só você, bicho estranho
habita a cadeia desnaturada
que cria sua liberdade de ação
para além da prisão
da sua desnatureza inventada.
Só você, cruel, bom, generoso
nos equívocos de tua boa ação,
impõe sua dúvida como método
e segue em frente por não saber o porquê.
Só você, sol da sua fome
mosca e leão
que se come a cada dia
em torno do buraco escuro
que a ilumina e desabriga.

Montagem

Fabrica-se um ser humano pelas faltas que o amparam:
a ausência de meios de sobrevivência do recém-nascido
o ensina a amar a mãe que o alimenta;
a ausência do pai omisso ensinam
a consciência da necessidade do amor
que a criança cria em seu primeiro esboço de adulto;
o que falta no primeiro amor negado do adolescente
faz sobrar a rejeição que ele inutilmente nega
como oferta de aprendizagem do não
que limita sua fome
e alimenta sua doação.
Fabrica-se a falta pela necessidade
que aleita o prazer insaciável do humano:
óculos que permitem ver o que a miopia
ensina a não olhar para aquém do todo
que compõe algo ou alguém;
rodas que caminham distâncias imensuráveis
entre paisagens de uma pessoa para si mesma
que enfim se enxerga e acha no vizinho
em caminho incompleto;
cabelos implantados em áreas de afeto não irrigado;
silicones em murchas capacidades de tocar;
próteses penianas que se enchem
da ausência de alguém que se esvai
na flácida lembrança do ideal nunca alcançado.
Fabrica-se um ser humano pelas faltas que o revelam:
o primeiro sorriso da criança que traduz
o prazer sem causa de haver nascido;
o último beijo ainda não dado a quem se ama
na memória do redimido.

Confinamentos

Várias são as prisões voluntárias
que pavimentam o caminho da liberdade:
os passos dentro de um quarto passeiam
a paisagem equidistante
entre o quadro da janela
e o que foge e sobra
à imaginação.
Vários os confinamentos livres:
ambientes de trabalho, namoros, casamentos, amizades, rejeições e aspirações
são companheiros de cela escolhida de onde escolhemos
os desejos herdados pela tradição que nos escolhe.
Alguma coisa na encruzilhada cheira a algo nunca visto
que abre a porta do quarto ou voa para fora da janela
e se espatifa no chão do céu de sua libertação.
Vários são os tédios voluntários
que pavimentam os cansaços da liberdade:
o céu do teto do quarto visto da cama
é menos ilusório que o prisma
que tinge de azul o céu
da sobra de universo
que não vemos.
O céu do teto do quarto visto
pelo sorriso do filho
cercado pelo berço
abre o resto de universo
que não vemos
e criamos.

Operopositum

Descansa-se de uma atividade
pela sua contrária:
o esforço físico
pelo intelectual;
o fracasso do desejo consciente
pelo sonho imaterial do sono
ou no ideal projetado no futuro;
o futuro que não chega
pelo tempo morto ganho no ócio
do presente ou na memória
que não descansa o que viveu
ou deixou de acontecer;
os arroubos da poesia
pela lucidez calma e enganosa da prosa;
a vida material
pelo ideal tátil do espírito;
o nada inexistente
pelo tudo que o define e extingue
em eterna ressurreição permanente
de uma coisa por outra
que nunca morrem
que nunca se cansam de não morrer.

Olhar

Não enxerga o mesmo um homem
que os olhos de um falcão
ou de um cão.
A paisagem é uma miragem
que se refaz a cada mirada
de cada espécie.
Não olha as coisas
uma criança
com os mesmos olhos
do que quer um homem.
O desejo é uma miragem
que se refaz a cada idade.
Não se encantam os olhos
sem a ajuda de outros olhos
que os ensinam a olhar;
muitos se encantam pelo encanto
do que alheios olhos olham
e jamais enxergam
a própria cegueira;
cegueira
cuja íntima consciência
é própria dos que enfim
aprendem a ver.
A paisagem é um olhar
que se refaz
a cada toque
que a molda.

Fiel

Fui fiel a uma promessa que me traiu.
A promessa tinha corpo, ideal
formato de uma coisa
que eu nomeei.
O nome não se colou à coisa,
o corpo mudou-se com o tempo
o tempo desnudou o falso ideal
que eu colei ao corpo da coisa.
Fui fiel a um nome que criei
para criar a minha fidelidade
à traição permanente das coisas.
Hoje, tento ser fiel a mim mesmo
e me traio conscientemente
como coisa a quem colaram nome, ideal
e corpo que se transforma
ao sabor do desejo de quem não me define.
Sou fiel a uma promessa que me trai.

Do que não é exatamente amor

Não há amor na vaca que não se doa
para ser o bife que a mãe tempera
com o afeto de doação
ao filho que ama.
Não é exatamente amor
ou doação ao próximo
o desejo que mastiga
o bife do desejo consumado
de um outro corpo
de um outro ouvido
que escuta e acaricia
a voz da fome do teu desejo.
Não é absoluto o amor
que se doa em sacrifício
e se percebe vaidoso
do heroísmo de sua doação
e requer o troco
de seu valor na história,
assim como
aquele do pai
que cria seu filho
para uma crucificação pública
com a intenção perpetuada em sacrifício
de celebração de seu nome.
É menos que amado
o pássaro preso na gaiola
que atrofia seu voo
para encantar a fome de beleza
que condena sua liberdade
aos olhos de quem o prende.
Seria talvez quem ama
quem se prende ou se deixa
morar no abate
ao seu carrasco que não enxerga beleza
em seu heroísmo silencioso
de quem não aprendeu se amar.
Tudo somado, nada seja amor de todo.
Talvez amor seja uma ignorância de seu propósito
como a gratidão do pássaro,
cujo voo inconscientemente ceifado
se rende ao agradecimento
pelo alpiste de seu carcereiro.