Sob a marquise do edifício ,brotam lado a lado
um jardim e um mendigo que furam a ordem
do concreto da cidade .
Um recorte da natureza cuidada pelo homem.
E o homem abandonado pelo homem
ataca os olhos dos transeuntes chocados por tão curiosa desnatureza.
O jardim floresce ao dia
oferecendo um laivo de beleza
no cinza que o passeia .
O mendigo brota à noite ,
doando o abandono à madrugada dos passos que o desviam , humilhando o jardim ,
que anoitece sua cor diante de tão miserável esplendor
que cala sua beleza .
De dia , cria – se um dispositivo
– um método asséptico, limpo-
para molhar o jardim a cada quinze minutos
e secar a presença desenraizada do mendigo ali plantado .
O abandono do homem é podado enfim
aos olhos e passos que contemplam , dia e noite , o jardim bem cuidado
que ora respira a ausência
da miséria evacuada
do homem abandonado
que com o jardim habitava .
Uma beleza miserável passeia
aos olhos do encanto indiferente do jardim ,
que ora se incorpora
à ordem do concreto da cidade .
Distâncias
Quatrocentos mil quilômetros
separam a terra da lua,
o satélite romantizado pela distância
outrora intransponível
que agora abriga os passos
que humanizaram o tédio solitário de seu solo.
Dois bilhões de anos luz separam
a via láctea de andrômeda, nossa galáxia vizinha
ainda intransponível pelo mistério
de alguma vida que talvez passeie
na ausência tátil
do solo insondável da explicação do universo.
Poucos passos me separam de você,
minha vizinha, passos que passeiam
a distância insondável
entre a intenção e ação
entre a vontade de chegar e colonizar
entre a sua vontade de abrigar nosso caminho
e a impossibilidade de passear no solo
que sustenta o desejo
de passear no desejo de sair de si mesmo
de chegar a um outro sempre tão mais distante
que andrômeda aqui ao lado.
Da janela, espio as distâncias –
da lua, de andrômeda, do teu quarto,
de nós.
Do espelho, as distâncias me olham.
Leve
Leve é o planeta
que dança em sua órbita
ou a pluma
que toca o chão
que a acaricia.
Leve é cada falta diária
que nos toca
em cada presença
ou sorriso negado
como a leve formiga
que nos pica e é esmagada
sob o peso da leveza de nossa
quase inconsciente indiferença.
Bem leve o tempo que nos cura
da picada cotidiana
ou o chão que nos ampara
na queda nossa de cada dia
ou a picada quase sem peso
que indiferentes oferecemos
à primeira presa
que nos sorria.
Leve, tão leve
a ausência do teu sorriso
cujo peso
quase não se sentia.
Esmaga-se ou anula-se assim
o peso de um corpo em outro corpo
com a leveza de uma picada
ou do sorriso
cujo peso
agora se percebia.
Anatomia utópica de uma depressão
Nenhum dedo se move
em obediência à revolta
contra a condenação da perpétua mudança.
Os olhos miram por dentro as pálpebras fechadas
que roçam a criação de uma luz escura
que cura a angústia da fome de contornos claros
de um foco que lambe os olhos
que se contentam em apenas enxergar as formas precisas
da indefinição.
Nem mesmo o tédio do desejo de morrer,
que esta é uma ação de amor
não correspondido à vida.
A depressão é a cura para a angústia
da criação extenuante de vida e mais vida.
Mas a doença clara- a vida clara- adentra
por entre as pálpebras mal cerradas,
se move
por entre os lençóis que roçam
a pele da lembrança de um corpo
a pele da memória do toque.
E os dedos se movem
E os olhos se abrem:
não há buraco
que se esconda do céu
que oprime
sua falta de lugar.
Graça
Que recompensa há na casa silenciosa
após um dia de trabalho após uma vida de contas
que se pagam do salário que salga o broto
de um corpo adormecido pelo tempo?
Após um dia de esforço
o quarto que o espera
vazio de sentido
vazio do desejo da mulher que o ama
com o afeto de quem lhe rega
como uma planta
que alimenta a água
que o espalha.
Após a vida de esforços
o sorriso do filho que se vai
colher os cansaços do pai
que sacia sua sede de perguntas
no broto da água que jamais permanece
no líquido repouso de quem refresca.
Que recompensa há no milagre da matéria viva
que jamais reponde sequer
à pergunta do prazer
que se espalha como água
que jamais sacia
a sede do seu jarro?
Nem tendo feito o que se devia
doendo como se havia
repousa esta água cristalina
que à própria paz inebria.
Jorra de um outro
e mais outro corpo
a graça
que na sede se cria.
Visível
Não haverá
olhos suficientes
para enxergar o gesto heroico
que ainda não tiveste
e que preparas na solidão onisciente
do teu quarto:
só o esquecimento te acompanha
na memória de cada gesto não registrado
na presença de um presente que nunca passa.
Ainda porém alimentas teu cão ou teu filho
que te olham na cotidiana epifania da gratidão.
Ainda porém aleitas a lembrança
da mãe ou do amigo perdidos
no eterno futuro do passado de um gesto
que jamais se verá –
e todos estes sempre serão olhos presentes
que se alimentam mesmo de tudo que ainda não destes.
Não há olhos ausentes
que não deixam de se ver
em cada gesto
nunca ainda não consumado.
O homem bom
Era vaidoso de sua generosidade;
devorava o mérito de sua contribuição
projetando a retribuição que jamais receberia
no cálculo de sua redenção.
Comia transcendências,
prescindia do divino
para devorar sua fome insaciada
na ingratidão daqueles
em que vomitava perdão.
Sabia ao certo
do desacerto
que é ser bom,
como um penduricalho
em roupa simples e surrada,
quase avessa a qualquer beleza
que a excede.
Sentia-se assim
como uma bijuteria
que imita o brilho
de uma joia inacessível a todos,
a ele inclusive.
Invejava, entredentes,
a nudez sem brilho
dos que se vestiam
de seus apetites,
que coroavam a joia opaca
de seus desejos mais simples;
invejava o criminoso abnegado
que se contentava com o orgulho
da sombra assassina.
E, orgulhoso de sua inveja,
se martirizava em êxtase
com seu crime inconfessado.
Refúgio
Em uma balsa cabe
incomodamente todo um país
em doze , treze pessoas
que acomodam dentro delas
o incômodo de um lar exilado,
desterrado da liberdade de caminhar
em solo que não seja todo este oceano
que o separa de seus pés.
Em um homem
cabe o aceno desesperado
de um chão.
Cabe incomodamente
o oceano em que naufragam seus pés
que caminham por onde rejeitam
sua possibilidade de chão,
onde caminham seus mortos e mortes
que respiram por onde seus olhos os veem
e escondem.
Em um chão
cabe um homem
que caminha e respira
por todo um povo afogado
pelo solo firme da ausência
de lugares países
onde nada mais cabe
além da indiferença.
Em um homem
cabe a exílio de sua humanidade
Cabe a mão
que resgata do oceano
sua possibilidade de chão
que se afunda
em possibilidade de céu.