Toque

Há uma parede invisível
em cada toque
que impede a fusão dos corpos.
Há um limite em cada corpo
que proclama a sua unidade
que proclama sua solidão.
Há na beleza algo de inacessível
a quem a engole pelo olhar
que não se sente.
No sexo, a tentativa exasperada
de invasão do inacessível
de agressão à beleza intocável
de assassinato da porta nunca aberta.
Na ausência, a fusão pelo toque consumado
na distância que acaricia a vontade perfeita
de união com um outro.
Há em cada abandono
uma parede derrubada
que impele
à fusão dos toques.
Eu nada sou
sem aquilo que tento
e jamais conseguirei tocar.

Gravidade 2

Da ascensão à queda,
apenas um passo:
um pé que se ergue e desce articulando
o compasso da caminhada.
Do olhar que se levanta
para o valor que encanta
e cai
na medida que o real
em sombras alegres
se decanta.
Do alto da cabeça
a consciência dos pés
que caminham;
a consciência dos pés
que pisoteiam sua caminhada.
Da ascensão à queda
apenas um passo:
o pé que articula sua queda
como queda para o alto:
os olhares que se desviam
para um valor mais baixo
que os levanta
à altura da pequenez
que ao chão se planta.
Da ascensão à queda,
espaço para todos os caminhos:
força da gravidade que atrai
corpos para o colapso – ou abraço-
de um centro indefinido:
o chão que abriga sua queda
o chão que abriga o céu
plantado aos pés
do tempo que se trai.

Inveja

O lugar onde pisas
é o espaço do roubo
que pertence à cegueira clara
de minha inveja.
A inveja que me pisa
é o lugar que me roubo
de onde nunca estou.
Não estar em si
é espaço suficiente
para começar a caminhar
para algum lugar:
porque em si apenas
nunca se pisa em chão suficiente
sem o solo movediço de um outro.
Não há lugar suficiente
para ter ou ser o que se deseja.
Não há lugar ciente
do espaço que abriga
os passos do desejo
de ali estar.
Os braços com que abraças outro
enlaçam meu desejo – não de ti –
mas do desejo que ganha seu gosto
no despertar da vontade de outro sobre ti.
O olhar que se desdobra sobre ti
onde não te vejo
lambe meus olhos
que acariciam a cegueira
de sua presença sempre móvel
por onde meu desejo
cerca tua ausência.

Acolhimento

Do teu ódio ,
eu colho a cicatriz da tua cegueira
e broto em teu corpo
a violenta semente do perdão
que ignoras.
Do teu ódio ,
justo pelas chagas surdas
da tua indignação ,
eu colho teu avesso
na sombra com que cobres teu sol
que me reveste no teu corpo
que me escondes;
teu sol oculto que me reveste
na semente do amor
onde tu me cresces .
Da rosa , eu colho o sangue
que molha o toque
que atravessa o espinho
do teu encanto .

lição de desaprendizagem

Desaprender o desejo das arestas
do que não é cerne;
reaprender a sentir o cerne
pelas arestas que não são vistas
pelo que limita o desejo;
redescobrir algum prazer envisesado
nalguma dor esquecida
e subestimada;
redescobrir algo além do prazer
do que está na tediosa ausência de toda dor;
reaprender a andar para dentro
do abismo que o ampara
segurando nas mãos do tropeço;
desaprender o claro
que cega o escuro
que tateia a sombra
do que jamais se consuma ser
e reaprender- sem fim-
o que se cria;
desaprender a imagem do espelho
que não se toca;
reaprender o reflexo partido
no olhar turvo de quem
cegamente lhe estende a mão;
reaprender o reflexo partido
de quem claramente
lhe nega a mão;
desaprender mesmo
o que não foi feito
pelo erro da intenção
e desaprender a ação do passado
pelo cheiro futuro do esboço
de uma visão;
desaprender o presente
pelo agora eternizado
de uma singela doação.

Não basta

Nada se basta.
E o não bastar-se
entope seu buraco.
Nenhuma orgasmo se sacia
com sua pequena morte
que pede sua provisória ressurreição.
Nenhuma dor é tanta
que não ceda à teimosia da tortura
da esperança.
Nenhum sorriso
alarga o prazer
que nunca se basta.
Talvez a promessa de nos encontrarmos-
cujo cumprimento se trespassa-
tenha lá sua adiada graça.
Talvez a ternura da criança
ao pedir uma esmola
ceda o ar da plenitude
de uma infinita graça.
E nem mesmo seu pai explorador
que abusa de uma infante desgraça
elimine meu ingênuo gesto de doação
que nunca passa
-mas não se basta.

Dinheiros

Perdi uma amizade quase verdadeira
por dois dinheiros desenganados.
Ganhei o que quase não valia a pena
por um esforço atado
a um princípio burlado.
Criei a verdade do que quis
por duas éticas enviesadas.
Noves fora, lucrei
uma solidão acompanhada
de fantasmas vivos que satisfazem
a aparência da ausência de paredes.
Vou comprando a dívida que me resta:
o tempo trespassado pelo saldo
de prazerosas pretensas virtudes sabidamente alimentadas.

Pequenas epifanias de troco:
o olhar agradecido do cão
pelo puro aspecto de uma errática
visão de seu dono que se doa
ao valor imerecido;
a memória deleitavelmente enganosa
da mulher avalizada pelos juros ideais
do futuro que se alimenta de um interminável
espaço adiante;
a expectativa nunca falida das pazes
através do pedido de perdão
ao amigo sabidamente estelionatário;
o filho, a amante, o amigo
– trabalho vitalício de remuneração inexata :
a reprodução de mais pessoas
como papel moeda de valor abstrato sem substância
criado virtualmente como mercado de troca
do afeto que se oferece como crédito
de um valor que cria sua inarredável necessidade.

Cadeia alimentar

A vida se alimenta de vida:
um leão estraçalha um cervo sem crueldade
a fim de sobreviver.
A dor torturante do cervo estraçalhado
não se espelha exatamente no desaparecimento
dos duzentos quilos diários de vegetação ingeridos pelo elefante,
este vegano desmatador da natureza
que serve sem causa aparente aos olhos
que a amam ou à boca que a devora.
Para se alimentar faustamente do poder que dividem,
macacos bonobos negociam sexo e violência.
Mais prática, a viúva negra devora seu macho após o coito.
Só o humano é capaz de comer sua fome
a fim de poupar seu semelhante da desgraça da dor
ou desaparecimento.
Só o humano é capaz de inventar uma fome
a fim de se alimentar da vaidade
sobre a dor derrota ou desaparecimento
de um semelhante.
Só o humano é capaz de criar
semelhanças ou diferenças
que o impelem
contra a natureza de sua fome.
Só o humano
é capaz de se alimentar da dor
da ausência de um alimento tátil
para comer transcendências.
A vida se alimenta de vida.
Só o humano canibaliza
sua insaciável interrogação
devorando sua natureza recriada.