O que sinto ou melhor o que creio sentir
da natureza invisível do que sinto
é como uma força da gravidade sem chão
que me suga para um centro intangível
mas inarredável na criação a que me obrigo
inarredável na colisão em que me abrigo
O que sinto
é como uma tentativa fracassada de suicídio
à espera desesperada
de permanente ressurreição.
Herança
Está registrado na maneira que te olho
a história de olhares de gerações
que espiam mortas
a maneira que as ressuscito.
Pesa no meu gesto de carícia
o afeto incontido de construções genéticas
de DNA’s inteiros que evoluíram
a ponto de domesticar o tacape
pela mão que acaricia
o atrevimento de minha intenção.
Nos caninos afiados
repousa o sangue
domesticado e invisível
da vítima que saboreio.
Repousa
no gesto desesperado do suicida
a esperança da retomada do gesto nunca concluído
de um fim que não se acaba.
Está registrado na maneira
com que vejo que me olhas
o gesto que embala a história dos olhos
que se criam a cada renovação
da translúcida cegueira que os alimenta.
Ao que desejo
E se pudesse não desejar o que desejo?
Se pudesse não desejar o que desejo
em nome de um desejo maior?
Onde achar a origem do que move
a ação de um desejo maior?
Como medir o tamanho de um desejo?
”Saciarás o desejo do próximo”
dizem os gozosos generosos do bem alheio.
Mas como medir a ação moral
do desejo de saciar o desejo do outro
com o de ensinar o que é um bom desejo
ao outro em que nos refletimos
a fome difusa de um desejo desencontrado?
O que desejar quando o desejo é um entrave
a um caminho que não se acha?
A doação mesma tem suas perguntas
que jamais saciam seu desejo de resposta:
sua fome é sua resposta
que sempre nos devora.
Delícias da insatisfação
O que gosto em você
é alguma ideia de você:
um dedo, uma orelha, um pensamento
um olhar furtivo que nunca encontra seu dentro.
O que amo e odeio no amor
é o ideal de seu uso e abuso:
uma palavra, gesto, corpo inexato
uma intenção esquiva
que jamais colide com seu pleno momento.
O que sobra na intenção
é a ação que nunca traduz
a execução de seu entendimento
ou o que não se basta
no desejo satisfeito
que sempre ejacula
seu sempre irrisório provimento.
O que jamais se enche de tudo
é o que sobra neste deleitável tormento.
Ouça
É possível fechar os olhos
– não os ouvidos.
Nem mesmo os surdos
que berram o silêncio.
É possível não ver a forma
que engana nossa miopia
ou enxergar a cegueira
que tateia nossa visão.
Mas os ouvidos não se calam
pelas mãos que nunca impedem
toda música que nos atravessa
ou a palavra que nos expressa
ou todo som que nos inquieta.
É possível fechar o corpo
mas nunca se cala
a voz que nos acessa.