Luz e liberdade

A mosca livre circunvaga
ao sabor do encanto pela luz
da lâmpada que a matará.
Um homem livre circunvaga
ao encanto do desejo
que ilumina a escuridão
de sua origem
(algumas lâmpadas acendem o escuro
de uma visão por demais clara que não enxerga
as sombras que desenham o contorno
de uma escolha)
‘De nada serve a liberdade
sem a devida consciência
de seu uso’
diria um observador das moscas suicidas.
De tudo serve a consciência
do suicídio de ser livre
em torno de toda luz
pela qual morre um homem.
Um homem livre como uma mosca
circunvaga ao sabor do encanto de toda luz
que fatalmente o matará
que fatalmente o viverá.
A luz, presa à livre cegueira
da mosca e do homem que a imploram
enxerga algum fim
no propósito
que os devoram.

Eternidade

Um momento é eterno
na medida que a memória
o reconstrói sem jamais o tocar
traindo sua morte provisória.
Uma foto é eterna
na medida que a imagem paralisada
não se toca
não se deixa tocar
como momento morto
que ressuscita sempre
na eternidade fabricada
de uma ausência sempre presente;
de uma ausência contemplada
na fome eterna de uma presença
que escorre pelas mãos que tateiam
o desenho de uma falta
que se agarra aos olhos.

Não por acaso

Não se bastam as coisas em serem coisas
mesmo não havendo nelas a consciência
de serem mais que coisas.
Não se basta a consciência
em perceber as coisas
para aquém do além do que elas são.
Não se basta o acaso de haver vida na terra
para além das probabilidades infinitas
de não vida em bilhões de outros planetas.
Não se basta o acaso de ter visto você
e me encantado ou mesmo lhe desejado
ou mesmo não entender o fundamento
do desejo que me é negado
mesmo que inventado.
Não se basta a invenção da vontade
sem a origem inexplicada
da construção da vontade.
Não se basta o gesto mecânico
de uma doação
sem a explicação inventada
de sua verdade.
Não se basta a verdade
sem a construção afetiva
que traduz sua vontade.
Não se basta a consciência
sem a ponte que a liga
às coisas
que jamais são apenas coisas.
Não se basta alguém em se saber
algo em meio ao acaso das coisas
que não são apenas coisas
que vivem em nós
não por acaso.

Bala perdida

Mirei precisamente na ideia do ideal.
Acertei furtivamente no erro da intenção.
Corrompi idealmente a vontade à ação.
Suicidei o acerto à ressurreição de seu mal.
A bala matou seu caminho
refez seu destino, acertando em mim
seu acaso triunfal:
acaso engatilhado
por minha mão
que batizou a ação do cadáver
da vítima que em mim jaz
em meu erro fatal.
Jaz em mim
o acaso engatilhado
em meu ideal desarmado
em ideal intenção de ação
sempre pronto a me matar
em um outro
que jamais sobrevive
a meu erro lisonjeado.

Nascer não acaba

Nascer não acaba:
o parto é permanente:
nasce novamente
a mãe no esboço do filho
e em seu desenho sempre inconcluso
que foge à sua carícia.
Nasce um novo feto sempre incompleto
do abandono da mãe. Do abandono à mãe.
Nasce a cada abandono sucessivo
um novo parto doloroso
de permanente nascimento:
nasce no desejo a vontade
de renascer nos braços de quem se ama
que abraça o feto de sua intenção
como quem embala
o sono da morte
a fim de que ela não acorde.
Desperta a morte que vai parir
a ressurreição permanente
de seus filhos
no desejo rejeitado
no abandono consumado
no afeto derrotado
no ideal destroçado
que sempre renascem
embalados
pela morte ausente
que os aleita:
morre a morte
permanentemente
no olho da criança
que reconhece a mãe que o alimenta.
Morre a morte
no abandono que se inventa.
Nasce na memória do que não foi
a esperança que se tenta
no filho da ação incompleta
que nos alimenta.
Nascer não acaba.
A todo tempo
a morte é quem desaba.

Fofoca

Me disseram que pouco sabem dele
mas que não confiam no pouco que sabem
e assim baixinho
me disseram mal do pouco que sabem
porque saber muito é sempre um engano
sobre quem se sabe pouco.
Muito me disseram
sobre o pouco que sei deles
pois falar de um outro é sempre um engano
sincero
sobre o muito que nos sabemos.
Porém me gritou alto
o sussurro com que se acusavam
em sua humilde sinceridade
acenando ao nosso mútuo engano
sobre o pouco que sabem dele
e sobre o pouco que confiam
no pouco que sabem dele.
Não me disseram da felicidade
sobre o pouco dele que sabemos juntos
nesta comunhão em silêncio tácito
sobre o muito que dele dissemos.
Não me disseram que ele talvez fosse você
a quem de fato pouco conhecemos.
Mas pouco sabemos do que dizemos
e por isto falamos:
para descobrir mais
sobre o muito que dizemos
sobre o nada que sabemos.

Apesar

Apesar da inveja que te tenho
te desejo o bem.
Talvez um bem didático
destes que ensinem valores
superiores ao sucesso fácil
-neste em que não me encaixo
-apesar do discurso em que não me acho-
e que te ensine a perder com garbo-
esta perda ganha que sempre me faço.
Apesar do amor em que me oferto
e que me negas
te desejo o bem –
talvez um bem nefasto
destes que te ensinem a amar
pela negação da coisa amada-
tão distinto desta doação que digo-
desta a que no vazio
sempre me abraço.
Apesar da mágoa que me embala
sempre me desfaço
no desenho do discurso
que esboça a mancha turva
do meu traço.
Apesar de mim mesmo
sempre traço no outro
a virtude do perdão
ao meu complacente descompasso.