Uma lágrima salga o sorriso
que nasce de sua queda iminente
Um sorriso ampara uma lágrima
que se evapora em um instante aparente
Uma gota de sêmen
enterra o desejo
que se esgota
em ressurreição permanente
O olho mira a vontade
de ser olhado
sorvendo a imagem
de uma miragem evidente
enquanto alguém espera
uma verdade frágil
como um cristal que se quebra
por dentro da gente
como algo alguém um corpo
que some ou se esquece
qual ilusão transparente .
Memória
Lembro-me exatamente de tudo
que não aconteceu:
recomponho lugares pessoas situações inexatas
aos moldes do lugar nenhum
da desmemória
que cria o sabor dos contrapesos
de uma realidade que teima em brotar
de um sonho fugidio
Lembro-se de fugir do sonho mesmo
para atropelar uma realidade criada
pelos próprios limites
e criar minhas próprias frustrações
aos moldes do meu sonho negado
Lembro-se com detalhes, diálogos, humilhações
de brigas futuras
que jamais aconteceram ou acontecerão
com os amigos mais próximos
com amores mais fecundos
de desejos mais inexatos
brigas em que luto
com a água turva de meus afetos
mais intimamente odiados
pelo apego desesperado
a todos eles
pelo apego desesperado
ao medo de me perder de todos
que me prendem
ao amor que me crio
e me esmaga
Lembro-me de odiar em silêncio
tudo que amo e me amedronta
a fim de destruir em mim
minha dependência
ao que me mantém vivo
e esmaga cotidianamente
Não preciso me lembrar
de sorrir cordialmente
sempre
no bom dia
a todo aquele
que finca dentro de mim
tudo o que me desespera
Afirmação
Estendo a mão à tua presença negada
e ela ampara tua ausência
como a um broto que nasce eternamente
de sua espera:
nasce para dentro de mim
o embrião do ideal
que me amamenta
com o veneno
de tua gênese fabricada
Nego enfim o leite
ao cadáver recém nascido
da tua existência inventada
como a fincar a raiz eternamente
na tua morte negada
Eternidade
Teu filho repetirá o teu gesto
talvez de um outro modo
e o filho dele também
insciente da semelhança –
consciente
de uma certa falta de acaso
Não tendo filhos, teu gesto
sobrará em algum outro corpo
com a mesma aparente falta de acaso
com que colheste o gesto
de quem nunca percebeste
e que agora te olha
e que agora colhe o teu gesto
zombando do acaso
em que caminhas.