A beleza da merda

Alguns tentam achar ouro
no meio da merda –
o belo nasce de uma busca
banhada de merda.
Alguns fazem do ouro
um cultivo à merda
que habita sua busca.
Alguns poucos
fazem da merda adubo
que cultiva a beleza das flores
e tudo que floresce e nos alimenta
( que depois vira merda).
O mais belo e produtivo
nasce
do sábio cultivo da merda.

Inversões

Proclama a relativa mentira resoluta
que não existe verdade absoluta:
a pedra que cai sobre a impostura
sequer tem gravidade para o veraz mentiroso
no baixo rigor de sua altura

Diz primeiro
o autor do autoengano calculado
que é vítima de quem massacra
a fim de massacrar
sem sequer
pela real vítima ser tocado

Diz só para si o ressentido
que sua fome de vingança
coroa seu crime
como justiça
que sublima por todos
e deságua em todos
sua mágoa –
seu ataque covarde de ferido

Há quem discurse contra o ódio
e em seu concurso
odeia todo aquele que não amar
da maneira exata do discurso

( há quem tanto ame
o rigor da palavra
que esmaga aquele
que – segundo ele-
não sabe usá-la )

Há os que tanto amam a tradição
que são fieis à própria traição
que usurpam surrupiam
do humano sua inteira condição
a fim de adorar – para aquém do humano-
uma sacrossanta instituição

Proclama uma concreta verdade dissoluta
que uma boa intenção
é uma pedra bruta
nua
que sobre uma cabeça humana
em moral gravidade flutua.

Sem dúvida

Talvez a moça que sorriu onde eu hesitei
e que virou na esquina do tempo
para nunca mais
fosse o amor da minha vida
talvez a palavra não proferida no momento da dúvida
fosse a exclamação da resposta
para a conciliação das perguntas
que esgotamos todas as chances
de nunca nos fazer
talvez o tempo perdido
no trabalho por um prazer
em tão breve tempo esgotado
pudesse ultrapassar eternamente
a satisfação de um orgasmo nem lembrado
talvez o rosto em que eu me vi no espelho
seja apenas a sombra do reflexo
de um eu ignorado.

Mas é certo que em você
caricatura
do meu sonho trespassado
que o tempo me trouxe
e que eu agarrei
como troféu de um erro mais acertado
seja a exclamação
mais alegre e furibunda
do meu assassinato
do acaso.

Metástase

Assim como o rancor
o perdão penetra pelas brechas
um a outro irmanados
combatendo a doença
com o mesmo veneno
que a forjou
coroando de ódio ressentido
e redimido
cada gesto martirizado
que o amor nos impele.

Assim como o ódio,
o amor nada esquece:
nenhuma palavra gesto ação
nenhum silêncio indiferença omissão.
O amor como o ódio
tudo guarda
na memória do amanhã
que recria o perdão
a toda a doença
que nos mantém de pé
para abençoar quem nos infecta
para esgarçar nossa infecção

Assim como a cura
o tumor nos enobrece.

Voz

 

Os que tem voz e se calam
berram seu silêncio
na voz amordaçada
dos que não sabem o que dizer
Os que tem voz e se calam
são ditados pelas vozes surdas
que os engolem

Os que falam e nada dizem
são ouvidos
pelos que tem voz e se calam-
ambos gritam
a ignorância
de sua surdez
que abre ouvidos e olhos
à mudez que nos limita

Os que falam-
por algo, alguém
sem mesmo saber o que dizem
ecoam uma tentativa
que tenta pronunciar
a palavra viva que nos habita