Água

Para além do teu erro
eu te amo
-na essência da virtude luminosa
incrustada na treva
da tua cegueira . 
Para além do que dizes fazes
para além do que me trai
amo fielmente a promessa
que carregas por sob tuas pálpebras fechadas .
“ te perdoo porque
não sabes o que dizes
não sabes o que fazes.”
Nem eu. Nós.
”Te amo pelo meu erro
compassivo a meu perdão”,
diria um tão generoso ser
assim a quem ama
enquanto o amado lamenta
o perdão que o generoso
não enxerga necessitar
para seu
voluntariamente
cego amor
que embrulha sua luz.
“ Perdoai -o.
Narciso toca no outro
a água que espelha
o reflexo
de sua entrega.”

Pequenos gestos cotidianos

Acordar.
Pisar o chão do sonho amassado
na inconsciência dos passos trespassados pela realidade .
Acordar o sonho
para sua transformação em realidade .
Erguer o corpo das quedas de ontem
para cair na vontade de desabar
um abismo até um outro
ao alcance de sua mão .
Atar os nós dos sapatos .
Atar os nós dos desacertos de ontem.
Lavar as mãos pelos erros de sempre.
lavar os erros das mãos de outros .
Lavar-se da sujeira do dia anterior
para sujar – se na placenta
da vida de todo dia .
Trabalhar :
os desmandos do chefe abusivo
os abusos do outro invasivo.
Invadir alguma fresta de algo bom
na parede que me separa
de um amigo.
Comer :
a vontade de não mais me saciar
devorar o desejo de não mais existir
defecar o vazio inexistente .
Voltar:
ao lar do beijo que não mais amo
a reinventar o amor
que não mais sinto
a forçar a recriação
do sentido do sentimento;
Reproduzir o carinho
no gesto forçado
a quem me cerca
até que invenção e força
sejam leves como o ar.
respirar :
os pequenos gestos cotidianos
que nos salvam de uma vida
não percebida .

Não chorei em teu enterro.

Talvez as lágrimas evaporassem
antes de brotar por eu não ter aprendido
a te amar devidamente:
amar a lógica das diferenças
para além da superfície do que nos unia;
amar o que eu insistia em matar em você
que era precisamente o que me fazia viver;
amar o que eu matava em mim para poder sobreviver
a nosso erros que plantei em você.
Não choro por tua ausência porque tua presença inacabada
está sempre por se refazer em mim,
ainda grita em mim
como a busca de uma palavra não proferida
de um carinho esboçado e não perpetrado
como a esperança desesperada
de um gesto adiado
e em algum lugar esperado.
Não chorei em teu enterro
porque teu cadáver ressuscita em mim
como um corpo
que eu abraço
em nossas vidas sempre inacabadas.
As lágrimas que não vieram
salgam a terra em que se afundou
a última despedida que não veio.
Não chorei no teu enterro
Não me despeço de você
porque eu ainda não mereço
chorar lágrimas que lavariam
a mágoa que atravessa nosso chão.
Não chorei no teu enterro
Não me despeço de você
porque não há despedida
para uma morte
para sempre
jamais concluída.