Nenhum grande problema aparente .
Todos os familiares na sala ,
menos alguns ausentes
por pequenos ódios naturais
ou alguma ausência em forma
de presença indiferente assaz sorridente .
Os sabores da Leitoa assada de natal
e gestos cotidianos
e algumas canções
sublimando os dissabores
que contornam a aparência
sempre insistente
de nenhum grande problema aparente .
Os mortos incidentes
sempre no afeto permanentes
coroam a continuidade
da vida que se vive e se ama –
sem nenhum grande problema aparente .
Os mortos iminentes –
um parente com um câncer
que à distância segura
come as sobras
de alguma tristeza não muito evidente –
nada que perturbe
a falta de nenhum
grande problema aparente .
De um , a falência grandiloquente
de outro uma letargia malemolente
gritam sua riqueza de aprendizagem
ao primo que venceu na vida
pelos cumprimentos efusivos
da família sorridente .
A inveja calculada temperada
com a generosidade complacente
à estupidez do erro fatal
do perdoado e distante parente-
tão próximo e presente .
O gesto de carinho que toca –
para além do que não compreende –
a melancolia indecifrável
e meio indecente
daquele sobrinho diferente .
( falta a você um grande problema , diz o tio ao sobrinho diferente )
Todos os gestos de doação
para além das bocas que mastigam a leitoa
e a saborosa alegria
que não mente
coroam a família
que come toda a vida
sem nenhum grande problema aparente .
Um cão transbordando afeto
come as sobras da leitoa
de uma ou outra
falha de comunicação
ou ausência de sentido
ou de gente
que caem no chão
de pessoas que se amam
sem nenhum grande problema aparente .
Esfinge revisitada
Ninguém sabia
o que ela pensava
ou sentia .
Nem ela se pensava.
E se ria
do que
nem sequer
sabia se sentia .
Não se preocupava
em se decifrar
porque se devorava
no que de si se escondia .
Comia tudo
que não compreendia .
Talvez a exclamação
de seu segredo
fosse a dúvida
que a quem a amava
respondia .
Sua beleza óbvia
que sua sombra revelava
que sua pessoa
de si mesma
a escondia
também a devorava
na solidão de sua orgia .
Mais
Um corpo não mais pede
por um desejo
há tempos negado
que a vontade desesperada
ainda o obriga a desejar .
Um moribundo não se sacia
com o cansaço e o medo
que a vontade nega.
Uma rosa murcha
não pede por sua beleza perdida
ou por vontade de vida
mas permanece viva
em toda visão
que a abriga .
Uma palavra não traduz tudo
o que ela vê ou quer da vida .
Toque algum consegue exprimir
o tato que desenha o desejo
de sua vontade
-seu desejo de verdade .
Toda chegada
pede e aponta
por um caminho a mais.
Sombra
Não enxergo por onde
você não me vê.
Por isto não vejo
minha ausência
em seu olhar .
Mas olhar
para minha cegueira deliberada
me faz ver por onde
me escondo
de mim mesmo:
grito por onde
não me veem
para que alguma mão
se estenda
e nos ajude a caminhar
em direção a uma luz
que nos cega .
Procuro uma sombra
que delineie o esboço
de um corpo
que eu possa abraçar .
Impotência
Acima do orgasmo
nenhum prazer se levanta
para além da consumação do ato
da tua satisfação imediata .
Para além do que te sacia
uma fome não identificada
constrange teu toque
para aquém
do que ele acaricia.
Acaricias a carne
de um espelho
onde tateias
a busca de um corpo:
o teu o meu o nosso :
nenhum de nós se funde
para além do que
o toque sugere .
Recomece
por tatear a ausência
que habita o êxtase
da nossa impotência .
Um gesto de delicadeza
Um gesto de delicadeza
esmaga a violência
ignora a indiferença
Uma delicadeza- suicida que seja-
a quem a ignora ou devora
inaugura no deserto negado
um sentido criado de beleza
que na solidão aflora
e ressuscita
um nicho de vida afora.
Uma flor, esmagada
pelo toque indelicado
que seu encanto implora
por espinhos sorve o sangue
da mão que deplora.
Um gesto de delicadeza
-assassino que seja-
a quem a delicadeza ignora.
inércia
Cada passo que não dou pavimenta o descaminho
que pisa em todas as possibilidades abertas.
Cada palavra não escrita
cada ação não encenada desenham o infinito
que suicida o texto da peça ínfima que limita
uma vida que se abre no sonho vivo da minha inércia .
Nada farei para encerrar
o espetáculo da minha lânguida ubiquidade
até que alguém repouse os olhos
em minha inação desesperada de esperança .
Nenhum sentido até que me apontem
o horizonte da encruzilhada .
Antes serei o maestro
da ousadia da minha covardia .
Por medo do vício
me torno a virtude da ausência habitada em mim mesmo .
Até que me toque- e me tocam sempre , tanto mais à distância –
Até que apontem o lugar nenhum de minha ausência
Até que me movam pela acusação
da obrigação de permanecer
à falta de opção mais clara
pela falta de qualquer negação
de estar em todos os lugares
todos os tempos
todos os esquecimentos.
Até que eu me desminta
por esta ode à impossibilidade ativa de minha inação
quando então aprenderei
o valor de um gesto interpretado
que encena um sentido
acreditado
criado
sempre vivo
tatuado na memória
de tudo que
jamais desacontece .