Para veres o real

Para veres o real é preciso saber enxergar
a escuridão dos caminhos que não percorreste – e negas –
em nome do fiapo de luz
que é teu único ponto de vista.

Teu ponto de vista caminha sobre teus tropeços onde pisas nos corpos que deixas de enxergar.

Para sentires a luz
é preciso que dês a mão
a um outro acima , abaixo de ti
onde ambos possam tocar a realidade caminhando sobre o corpo um do outro
tateando a treva que abriga teus caminhos

Para veres a luz é preciso enxergar a mão
que percorre e constrói teu caminho.

Não há descanso

não há descanso para o que vive. Não há descanso para o que deseja . Um coração bate do peito de quem dorme. Um sonho vive na consciência de quem o mata . Correndo a algum canto , algum sentido , me distraio na fuga da sombra do que não me deixa : um sorriso abandonado , um aceno negado , palavra enviesada , pedaço de alguém em mim enxertado. Me movimento para não pensar no nada que não existe.

Descanso a mágoa em outra dor , descanso as mãos do toque que não veio escrevendo este poema que toca na trágica dor que não houve . Nada porém descansa a espera esperançosa de ultrapassar a fome que nunca se esgota em sua saciedade . Tenho fome e há comida . Tenho desejo – há sexo . Tenho olhos – há o que ver. Mas não há céu suficiente que esgote minha visão . Não há visão suficiente que veja cada elemento infinito do céu que não mata a fome do meu desejo de infinito .

Não há descanso para a esperança sempre morta em uma vontade satisfeita. Todo desejo encontra sua morte- No consumo do outro . Ou no sacrifício da vontade – que se debruça em se matar pelo outro . Só o suicídio da vontade nos descansa – matando a fome na boca do outro que sacia sua vontade de céu .

Escolha

Habitas em todos os lugares do que podia ter sido . Em cada escolha , um bilhão de possibilidades assassinadas . Cada gesto , um bilhão de ações enterradas . Cada sono , um rastro de sonhos vivos derramados no chão da inconsciência .

Não há paz no que se sabe vivo . Um animal vive o eterno de um momento que morre . Um humano vive um momento que jamais se esgota : no afeto a um morto que teima em ressuscitar na memória do gesto acontecido , na reconstrução do gesto jamais concebido . Um momento da morte mesma de todos os afetos jamais conhecidos.

Teu olhar nunca é do tamanho do que vês e sabes que deixas de enxergar .

Habitas em todos os tempos que quase se passaram ao largo de ti , dentro de ti . Na rua , As pessoas por quem atravessas te dão acenos por onde te dispersas , pelas vidas que perdeste em cada palavra não dada, em cada olhar desperdiçado por onde poderias ter te abismado.

Todo momento não vivido , todo algo ou alguém não acontecido é morte . Deus não escolhe teu acaso . Tu és o Deus precário de tuas decisões que abandonam o infinito de tantas outras .Te agarras ao que aparece , mas o que aparece é fruto da tua escolha assassina de um infinito de possibilidades .

Assassino de oportunidades , aprende a amar o acaso que te escolhe , aprende a amar tua escolha débil e ignorante do infinito que sabes maior que tua escolha . Aprende a amar e fazer infinita tua escolha débil – por alguém , por algo – mergulhando no abismo do teu erro mais acertado. Trabalhe por sobre a debilidade da tua escolha cega para dar luz ao que abandonaste no vasto caminho que não percorreste:
Molde o trabalho débil e mal escolhido que abracaste , molde a pessoa errada que escolheste a fim de que se tornem escolhas melhores pelas frágeis mãos com que os envolvestes . Faça da tua escolha débil um caminho Para iluminar a cegueira de tantos outros.

Só assim terás a paz dos que moldam sua ignorância na virtude de fazer o bem ao que aparece. Não há outra escolha .

Injusto

A injustiça escorre entre os teus dedos. O justo não cabe na tua mão .

Nada cabe no espaço onde nada se ajusta no tempo da vontade da tua justiça que não cabe no espaço do teu desejo .

O rosto de quem amas se converte na face do carrasco que deploras pelo injusto olhar do amante que não te adora .

Não é exatamente justa a esmola que ofereces ao perdão que te doas como oferta à injustiça humana. Não cabe a tua esmola em nenhum espaço Que não se ajusta à miséria que te cerca. Tua misericórdia oprima toda ínfima justiça.

Não cabe a morte de quem amas no tempo da memória que se eterniza na chaga que não tocas e não te abandona .

Não cabe o amor que ressuscita em outro que toma lugar de um amor assassinado por teu esquecimento voluntário.

Não é justo o esquecimento cotidiano da tua omissão diária contra tudo o que poderias lutar e te oprime pelo sono onde sonhas com tua ação redentora que nunca desperta.

Não é justo o riso do que te vence pela injustiça que não cabe no mérito que não te pertence .Não é justo o valor do demérito com que te compram . Não é justo teu ressentimento pelo mundo que não cabe em uma vida melhor , que não cabe em tua vida melhor .

A justiça não cabe na tua mão não cabe no sorriso da criança que engole o mundo que inocente se ajusta em sua terna vontade .

Injusta é a boca da criança que se alarga no sorriso inocente que devora tua fome de justiça.

Esforço

Uma ação se julga pelo seu esforço.
Uma pluma erguida por um moribundo
sustenta a força de sua humanidade.
Aquele que tira de sua fome um pedaço de pão
Doa a sua carne a quem sua alma implora .
O amigo que cicatriza o caráter de quem o trai pelo perdão que
acaricia a lâmina da faca que o rasgou .
O carcereiro cujo gesto de ternura devolve
a esperança ao prisioneiro
que roubou de si a compaixão.
O professor que ensina a outra face da razão
ao aluno que o esbofeteia .
O filho que devolve ao pai demente
um gesto de carinho que coroa a
sanidade inviolável do afeto .
Um copo dӇgua, um toque de ternura
Um simples gesto quase invisível
aos olhos dos carrascos devolve a vida
ao assassino e sua vítima.
Os corpos se vão
As ações não .
Uma pluma erguida por um moribundo
sustenta a força de sua humanidade

O genocida

Apedrejas a quem chamas de assassino
com a mesma mão
do carrasco que adorna a justiça
com a paixão de matar .
Aplaudes teu gesto de ódio com a mão
onde mergulhas no sangue invisível da vítima
que ignoras e banha teu clamor de justiça
que justifica tua vaidade genocida
que mata cada visão da realidade
que tua ética subversiva cega
em nome do amor à vida
que dizes propagar .
Crucificas a liberdade
Crucificas a vida
em cada gesto de tentativa e erro
que encaram a vida
em nome da tua covardia
de viver.
Em nome do teu amor
à sobrevivência
vais matando o trabalho
de cada dia
que alimenta a vida
de quem dizes amar .
Os cadáveres da tua moralidade
pavimentam o caminho
em que andas progressivamente
à chegada da luz que ilumina
a tua treva .

O certo a fazer

Você sempre sabe o certo a fazer.
Nunca é difícil o certo a fazer:
o gesto de perdão , a palavra de afeto
o mínimo esforço de uma comunicação
a quem não o entende
o afastamento de quem te esmaga
a ausência da ação de não tomar
o que não te pertence
a esmola a quem precisa
o olhar a quem precisa .
Nunca é difícil o certo a fazer .
Infinito porém
é o pequeno hiato entre
intenção e gesto
entre o breve esquecimento
e a ação não executada
do certo a se fazer .
Um breve momento de omissão
de preguiça vaidosa
que gera recompensa ruidosa
E desastrosa
que reverbera no eterno
do tão fácil certo a se fazer
não feito
que se dissipa no ar
e implode no silêncio no coração do vazio
da história do que jamais foi feito .
que explode na angústia varrida
pra dentro do teu falso desentendimento.
O certo a se fazer
que não foi feito
reverbera no impossível
do que nunca poderá ser refeito .
Você sabe do certo que poderia ter sido feito
e não fez .
Assim se perdoa nos futuros gestos
que remendam o não feito :
o carinho nunca dado adiado ao irmão
ora distribuído no poema ou no afeto ao cão
que não restaura tua inação .

Você sabe o certo a fazer .
Nunca é difícil o certo a fazer .

Não é um poema de amor pra você

Te amo tanto quanto te desprezo .
Tuas palavras banais , teus conceitos fetais tuas ações boçais
não conseguem salgar o doce
do gosto superficial e sublime
de cada gesto teu
que me deslumbra
e ultrapassa toda linguagem
ao alcance da razão.

Te amo tanto quanto me desprezo
ao te amar .
Tua superfície escancara um fundo
onde não me reconheço
e revira todos os meus conceitos
que se evaporam ao sol do teu encanto
que queima meus olhos embevecidos
com a própria cegueira .

Te amando amo não me entender
Tento ver teu fundo
e só enxergo o abismo
do que não sei de mim:
o abismo do que não sei
do que desejo em ti .
Amo em você não me reconhecer
Amo em você
destroçar minhas certezas
Te amando mato cada princípio lógico
que em mim habita .
Te amando
sou um cemitério de certezas
que apodrecem na Ressureição permanente
do teu cadáver que teima
em viver em mim .

Amo em você o princípio de me odiar :
Odiar a casca que envolve o narcisismo estéril
do que penso saber de mim , dos outros , de você , de tudo .
Tudo em você me convida a uma pergunta desesperada
que jamais respondo
sobre
a fundação do meu desejo ,
do meu sentido de viver ,
do meu precário sentido
de não querer morrer –
por teu desgraçado encanto
que me faz querer a mim mesmo sobreviver

Amo sobretudo minha rejeição fracassada
em tentar não te amar mais
nos odiando e amando
para fugir de toda tediosa paz .

Fora da tua casa

Ninguém vê de fato a própria miséria . Enxerga , passa os olhos sobre o que dilacera a visão e caminha sobre a indiferença. Joga alguma esmola que suborna uma tentativa de mudança.

Ninguém vê de frente a própria indiferença . Enxerga de lado a impossibilidade de curar a miséria de tudo , a impossibilidade de curar seu fundo.

Mas a miséria não tem fundo . A miséria não tem casa para ficar , se proteger do medo do vírus , a miséria não se protege da morte ; e a morte vive caminhando ao largo dos lares que berram seu silêncio.

A todos tu mostras teu amor burocrático , distribuído entre os teus e a boa intenção voluntária de salvar o mundo , sem nenhum risco
de esbarrar num miserável , sem trabalho , preso à liberdade de morrer fora da tua casa , onde tua boa intenção abraça a vida invisível , sem risco , sem coragem.

A todos tu mostras teu amor covarde , que abraça o mundo e não toca um único ser ; teu amor covarde que não estende a mão a um único trabalhador trancado fora da tua casa ; trabalhador que rejeita a esmola do teu ideal ,trabalhador sem trabalho que tantas vezes é esmagado pela esmola de teu ideal.

A todos tu mostras o amor covarde por toda segurança que esmaga a liberdade que também não é a tua : porque tu também te aprisionas ao teu poder de esmolas indiferentes que impedem a fuga da miséria dos que fogem do conforto do teu lar .

Nascer não acaba

Nascer não acaba:
o parto é permanente:
nasce novamente
a mãe no esboço do filho
e em seu desenho sempre inconcluso
que foge à sua carícia.
Nasce um novo feto sempre incompleto
do abandono da mãe. Do abandono à mãe.
Nasce a cada abandono sucessivo
um novo parto doloroso
de permanente nascimento:
nasce no desejo a vontade
de renascer nos braços de quem se ama
que abraça o feto de sua intenção
como quem embala
o sono da morte
a fim de que ela não acorde.
Desperta a morte que vai parir
a ressurreição permanente
de seus filhos
no desejo rejeitado
no abandono consumado
no afeto derrotado
no ideal destroçado
que sempre renascem
embalados
pela morte ausente
que os aleita:
morre a morte
permanentemente
no olho da criança
que reconhece a mãe que o alimenta.
Morre a morte
no abandono que se inventa.
Nasce na memória do que não foi
a esperança que se tenta
no filho da ação incompleta
que nos alimenta.
Nascer não acaba.
A todo tempo
a morte é quem desaba.