A criança cega

Foi vista a liberdade
perseguida e acuada nos becos
violentada em nome
da saúde pública
e segurança nacional.
« é pela vida «
diziam os que a surravam.
Foi vista mas ninguém a percebia.
« é pra sua segurança »
diziam os Carrascos
que encenavam ao público mudo
o espetáculo.
Arrastada em praça pública,
nua, torturada , imobilizada,
a liberdade estrebuchava seu
quase cadáver à vista
da indiferença calculada
dos transeuntes
que por ela passavam.
« é pelo amor « , diziam
seus espectadores passivos.
Uma criança, cega ao espetáculo,
tocou a liberdade.
Os transeuntes desesperados correram assustados pela Ação da criança infectada.
« está doente « , gritavam.

” é por mim e por você « Disse a criança à liberdade -que lhe sorriu.

Reprodução

A vida se alimenta de mais vida.
O sorriso do teu filho embala
o teu sentido de vida
que embalará o sorriso do filho dele.
Não só.
A vida se alimenta de morte.
Cada sorriso negado
cada gesto esmagado
cada desejo enganado
reproduz o choro
de um eterno recém nascido
que berra pelo desconforto de nascer
após o sono no útero de um afeto sem cálculo.
Não há sono porém que descanse este nascer
permanente
que dói na eterna criança
que aprende a crescer perdendo –
brinquedos gostos ilusões pessoas amores dentes e sentidos .
A vida perde sempre o sentido.
 margem do que sempre se perde
criamos no gesto sem cálculo e desacreditado –
nunca lembrado
que salva uma vida
que gera uma lágrima
que banha um sorriso –
o útero que nos cria:
o deus que nos embala no sentido
nunca esquecido
do sorriso perdido do filho.

Nenhum adeus é eterno

Nenhum adeus é eterno.
Tudo acaba cotidianamente
Tudo morre cotidianamente
pra retornar de outra forma
Pra ressuscitar de outra forma:
Morre teu desejo pra retornar
em amor maduro sem cálculo
Morre teu amor pra retornar
em ilusão calculada de ressurreição.,
Se vai provisoriamente quem sai
pra comprar cigarros e nunca volta
pra morar no desespero tácito
da esperança de um adeus.
Nenhum adeus é eterno.
Tudo dura da dúvida
do que sentes
do que deixaste de sentir
do que aprendeste
com teu sentimento confuso
do que aprendeste do sentimento maduro
da dor de uma perda – sempre provisória
tatuada na carne de tua memória
que se transforma em sentido.
Tu te acabas a cada dia
Te despedes a cada dia
a que e a quem querias
te despedes a cada dia
a quem tu eras
permanecendo sempre
à espreita
de um reencontro consigo.
Há sempre um outro à sua espera
dentro e fora de Você mesmo.
Tua eternidade sem adeus
dura pelo tempo
em que te acostumas
a conviver com a perda inexistente
com a morte inexistente
na tua eterna renovação
na tua cotidiana ressureição.

Nós

A solidão berra em silêncio um nome
já esquecido ou ainda nem conhecido
a fim de povoar a multidão de desencontros
que se apresentam em cada aglomeração
de sombras . sombras de expectativas
sombras de cadáveres vivos que se arrastam
na memória de um amanhã adiado
sombras vivas de carne e osso
que tentamos tocar
e que desaparecem ao esboço
da tentativa de alguma luz.
Da festa de silêncios povoada
em meu quarto
Da festa de silêncios povoada
na balada genocida
de diálogos desencontrados
escuto a tua voz também solitária
que pela esperança de uma tentativa
de toque , vomite alguma luz.
Sós , entrelaçamos nossas solidões
sem sequer nos vermos
sem sequer nos conhecermos
Sós , somos muitos , somos todos
somos a esperança da fusão
de nossos corpos apartados.
Nós entrelaçados
apartados
de nós mesmos.

A construção da espera

Não adianta apenas esperar. É preciso construir
a espera . Saber o que esperar. Lapidar a esperanca com a ação que molda o desejo .
Não adianta apenas desejar.
É preciso ensinar o desejo
, amadurecer o desejo a saber quem ou o que desejar. Nada nasce ao vento do acaso . Nenhum desejo , nenhuma vontade se desenha no ar. Tudo nos é imposto ou tudo construímos . O acaso é um falso vento a nos pesar . É preciso sorver o vento do desejo e da espera sem cálculo que nos empurram a nos derrubar.

Não adianta apenas amar. É preciso agir na ação desesperada que constrói meticulosamente a ação de querer gostar : de alguém , de alguma ideia de algo ou de alguém . Idealizar pode ser a construção da ilusão que nos corrói ; OU dealizar pode ser construir algo , alguém , a vida , aos moldes da ação de nosso ideal que nos constrói .

Nao adianta apenas viver. É preciso lutar com duvidosos desejos , falsas esperanças , inexistentes acasos , pérfidos ideais , moinhos de vento que nos destroem no ar. Não adianta apenas viver . É preciso morrer constantemente a cada erro e eternamente a cada instante saber ressuscitar.

Culpa e graça

Não há culpa no vírus mortal
que se alimenta de morte
para assegurar sua vida
tampouco há culpa
na rosa e seu espinho
que ferem a mão
que viola sua beleza
tampouco há culpa no desvio do olhar
do teu grande amor que o ignora
tampouco há culpa
no reçém nascido
que – pelo desconforto de nascer –
chora.
A culpa é uma excrescência
da consciência que a alimenta.
Não há tragédia maior
para a excrescência da consciência
que não enxergar culpa
e não se culpar pela cegueira
e apontar a esmo ou a cálculo
o culpado por tua desgraça.
Culpado é aquele que não enxerga
a própria graça:
a graça do sangue
que banha o encanto da flor
cuja beleza se implora ;
a graça do amor que jorra
e lava a indiferença
que o ignora ;
a graça do vírus
que o conduz
a uma aprendizagem sobre a morte
ou a outra vida afora ;
a graça da criança
que pelo teu afeto e atenção –
chora.

Psiu

Te contar um segredo:
a vida, esta daqui,
não vale tanto assim pelo que oferece.
Nenhum prazer ou dor
justifica a criação de um sentido.
A vida se justifica pela tentativa
desesperada
por uma espera
que jamais cessa;
a vida se justifica
pelo que ela não mostra,
por algo mais
que a ultrapassa
e que tocamos pela tentativa
de algum erro
mais acertado:
um amor heroicamente ignorado massacrado,
criado na ignorância orquestrada do desejo ;
a tentativa de ajuda por
uma ideologia incompleta;
uma mentira alentadora
a um desenganado;
uma esmola
a quem nenhuma posse
resolve a sua fome ;
uma cachaça
a quem tem fome
de além do que come.

Não se engane jamais
por quem diz
que nada
pode ser feito.
Tudo é feito
e tudo melhora
embora nada resolva
esta fome eterna
que nos devora.

Te contar um segredo:
a vida nada tem
de secreto
naquilo que ela
não ensina;
a vida berra o que não diz
enquanto não escutamos
e agimos contra
o silêncio da resposta.

Do que jamais se consuma

Nenhum beijo é tão amargamente desejado
quanto aquele colhido por outro
na boca da mulher que você crê desejar
e que ela oferece ao que sequer pensa querer .
Um desejo se despossui
na medida que se sacia a distância
de sua fácil consumação.
Uma paixão é eterna
na medida de sua rejeição
que se projeta para sempre
na memória do que jamais será .
Uma palavra não dita
Uma palavra maldita
se perde
e se tatua na memória do nada
que jamais se cicatriza.
Nenhum lugar é tão belo
quanto aquele que você ainda
não está e gasta seu ficar .

Amar é se despossuir
de todos os lugares
onde você não está.
Amar é se unir
à sombra da queda da inveja
na ilusão a ruir.
Amar é se entregar
à luz da queda do desejo
de apenas possuir.

Nenhum desejo é tão infinito
quanto ultrapassar a posse
do que apenas se quer.
Nenhum beijo nenhum amor
jamais de todo se consuma
no corpo da mulher que se quer.

Amar é um jamais se realizar
contemplando o ressentimento
de si a aflorar
de si se arrancar.

Esmola

Uma esmola é um trabalho
de devoção que não enxerga
o engano de quem trai
tua boa intenção .
Um dinheiro um afeto
um olhar que se doa
redime a tua miséria
que se oferece mesmo
à vingança de amar
a quem lhe esmaga
com o peso de uma ingratidão
ou massacra
à sombra da indiferença
Uma esmola de fidelidade frontal
ao amigo que te esfaqueia por trás
adoça a lâmina que beija a tua mágoa .
Uma esmola de compaixão
ao patrão opressor
que mendiga por sua incapacidade
de ser amado .
Uma esmola de atenção ao miserável
que explora
a própria pobreza de não querer se amar.
Uma esmola de um gesto de carinho
nunca sentido a quem você ama :
um gesto suspenso crucificado no ar
sem nada esperar .
Uma esmola solitária e invisível
que te alça a um altar .

Comedimento

Procure se acalmar
sem perder o desespero tácito
que a razão recomenda
como remédio para toda frieza
que invalida a criação arbitrária
de um sentido de vida.
Procure amar desesperadamente
sem perder a ironia dos que se entregam
ao toque movediço de uma sombra
do que se deseja da própria vontade.
Procure alguém abrace alguém
abrace algo tangível de alguém
sem perder o cálculo da perda
sempre presente e iminente.
Não perca porém
a tentativa exasperada
do abraço.
mesmo a tentativa do abraço
crucificado no ar.
Procure um caminho
mas não se esqueça de se perder
vez por outra
a fim de nem sempre achar
o que você acha que quer.
Estenda a mão
a quem não conhece inteiramente
Estenda a mão
ao erro que nunca se lembra
de se esquecer.inteiramente.
Procure cotidianamente morrer
com algum calculo e previsão
a fim de ressuscitar em algum outro lugar.
Procure se perder com método-
não há outro caminho –
pra não correr o risco do tédio
de se achar completamente.
Procure nunca estar longe
dos alegres descaminhos
de outras pessoas .