O querer

Não é o que quero no momento
mas o momento atravessa o que quero
A todo momento o que quero
deixa de ser o que quero .

Tento fincar raízes no que quero querer
Pra que a eternidade me queira
Pra além do momento que atravessa
o que quero .

A todo momento, o que quero me escapa
A todo momento uma chance me escapa:
de me conhecer em alguém que não quero
de dizer algo que salvaria alguém
de omitir algo que me perderia de alguém
uma simples palavra uma simples ausência
faz desabar o acaso
na construção de um encontro –
com algum outro que nos revela
ou solidão que nos enterra .
a todo momento uma vontade nos escapa
um querer nos escapa
a todo momento nos perdemos
nas múltiplas chances que ignoramos
de pessoas que ignoramos
de momentos que ignoramos
nas chances que massacramos.

Envelhece o querer
Mas nascer não se esgota
envelhece a paisagem do teu desejo
Mas tudo renasce e floresce
em algum alvorecer
A morte de uma flor
não apaga a beleza efémera
do olhar eterno que eterniza seu florescer

A flor que quero e não toco
finca raízes no que quero querer
Pra que a eternidade me queira
Pelo momento eterno que atravessa
seu breve morrer .

Do ponto

Do ponto onde espetam teu dedo não enxergas
alguém sendo espancado
Alguém esfaimado
Do ponto onde contemplas
a chaga à tua vaidade
não vês um suicídio a teu lado.
Do ponto onde saboreias tua ofensa
centrada na mágoa
do teu dedo acusador
Perdido na tua ridícula dor
Não enxergas a misericórdia do amor:

Mísero sofredor, aponta teu dedo inquisidor
Pra todo canto onde houver maior dor .
engole tua mínima ofensa.
Engole este unguento :
enfia teu dedo na despensa
e entregas teu corpo como alimento
a uma dor mais imensa .

O real

O real

O céu mente sua imagem real:
estrelas mortas, astros não nascidos
esperam pela luz que não chega a tempo
aos nossos olhos
que também nos mentem
a matéria vista:
os limites da nossa visão
enxergam a beleza do rosto
que não se desfigura nos póros abertos
cicatrizados pela generosidade
de nossa cegueira

O que olhamos nos olhos alheios
é o ideal virtual
de como queremos ser vistos.
O verde da grama sintética
apascenta os nossos pés
que sentem a natureza
de uma humana invenção.
O sabor do fogo
alimenta o gosto
da besta cozida
pela real civilização
O calor do sol
em nada se compara
ao afeto fabricado
de uma amena calefação.

A vida cria sua imagem irreal:
paisagens mortas, corpos não nascidos,
crias não vividas
não esperam pela luz que atravessa o tempo
a olhos vistos
que também olham
para além do que cria
nossa mesma imaginação.

Balada do fantasma patético

Choro por tua ausência
Que me desespera
Choro por tua presença
que me dilacera .
De vingança por meu desejo
sempre insatisfeito
juro que morrerei De Amor
e volto pra te assombrar toda noite
e te espiando nua no banho
Chorarei como as águas
que escorrem por teu corpo
E não tocam tua alma .
Juro que me vingarei
dos teus olhos que nunca me viram
te amando
pela eternidade da tua indiferença .

Dividido

O país anda dividido
Ninguém se olha sem mútua desconfiança. O ódio civilizado escorre pelos silêncios que gritam a ignorância da indiferença calculada.
Civilizado apocalipse , pais não reconhecem filhos , mães mordem seus úteros , amigos se partem em bolhas que murcham em solidões coletivas. Ainda amo as penugens das axilas da feminista que castram minha distância . Ainda amo as divisões que nos aproximava.
Ninguém sabe direito porque se dividiu. Nascemos partidos e procuramos alguma parte que complete nosso desencaixe .

O pão segue sem divisão . Ninguém por ora parte um pedaço da sua carne para cicatrizar um vazio que jamais se esgota . O vazio nunca se esgota na fome de um outro que jamais se sacia . É este vazio que nos amamenta .

Nos dividimos pra nascer: o útero da mãe não mais embala o sono de nosso conforto. Mas nunca do útero partimos: Nos unimos pra viver : o sono do desejo desperta a vontade de a outro corpo sempre pertencer.

O país anda dividido. E você , mísero feto partido , aprenda a andar rumo a um útero que estranha e desconhece
a fim de poder renascer .

Para além do momento

Um gesto ou palavra
jamais voltam no tempo .
Um bicho não se sabe mortal e vive eternamente
preso ao momento .
Mas você animal racional sabe
que um gesto ou palavra
corrigem um erro no tempo,
projetam um tempo melhor
remendam o tempo.
Você , animal racional
que se sabe mortal
é o único capaz
de corrigir seu tempo
para além do momento

Balada do falso mau

Todos são mais felizes que eu.
Todos são mais simples , virtuosos e contentes
que eu .
Por inveja e ressentimento
trabalho para a construção
de uma realização que ultrapasse
o prazer frágil
de uma felicidade que se esgota sozinha,
Firo cada felicidade isolada
da frágil morada humana que
carece de abrigo e comida
e se alimenta da fome do vazio
que desconhece dos miseráveis felizes
que habitam um sonho estéril .
inauguro uma fome para além da boca.
Abro uma boca que devore um apetite
para além do gozo e da saciedade .
Inauguro um afeto para além da carne
do filho
torno filho por adoção
o aborto que renega sua família
torno família quem renega sua humanidade .
torno humano quem vai além de sua carne
e olha na poça da sarjeta o reflexo do ceu
que o desaba .
Sádico , saboreio cada dor como antepasto
de um prazer maior que vai inaugurar a beleza de um urubu mais pleno
que não só devora a carniça
para limpeza dos olhos humanos
mas revela a beleza da carniça
que enxerga a podridão como
caminho para a redenção.
Por desprezo à felicidade
cercada por muros
me crucifico
para além do prazer
dos felizes que
não percebem
a virtude da miséria ao lado.
Terno , beijo nos olhos do canalha infeliz
sua bondade castrada .
terno , arranco do fígado do feliz
sua miséria entranhada.
Todos são mais felizes que eu.
sem saber o que é um feliz ,
sofro contente reconstruindo
uma alegria difusa
em minha nossa humanidade
desencontrada .

Sem fim

O ano acaba ,o dia acaba , o mundo acaba , tudo acaba pra recomeçar outra vez. De nada adianta o desespero do suicida cuja esperança de menos dor em outra vida enterra sua morte . De nada adianta o sono do deprimido que desperta seu sonho que adormece seu desencanto . Nenhuma doença do corpo , da alma cura uma doentia vontade de viver , desde o vírus que se alimenta da morte até à certeza da morte que alimenta a fome de cada momento mortal que se tatua na memória de algo mais .

Mesmo o ódio se alimenta como paixão à rejeição de amar. Não acaba a indiferença no peito de quem não é visto por quem ama e não acaba a esperança de amor pelos olhos que não te enxergam . Nem se acaba a cegueira que se alimenta da sede eterna de tudo que não vê e toca .

Esperanças contrariadas não resistem ao terno olhar de um cão que restitui uma humanidade perdida . Um meteoro , pandemia que destrua a humanidade restitui a ternura da espera de outra espécie tão mais primitiva que engula o risco de viver sem a máscara de um falso fim . Nao se acaba a flor na eterna memória de sua beleza que espeta a mão do curioso que não sabe tocar seu encanto .Não acaba teu trabalho , teu tijolo posto no lar de quem te abriga e não vês . Uma formiga não se acaba no DNA de seu trabalho pelo bem do outro . Não acaba você na carne do teu filho ou mesmo na memória de quem te olhou e nunca te viu com os olhos de promessa que você coroou . Nem mesmo se acaba a dor do não vivido na memória lírica e desesperada do quase ou não acontecido. Um desejo jamais saciado se projeta eternamente como o que poderia ter sido e jamais se acaba . O projeto da humanidade é um desejo jamais saciado que jamais se acaba .

À sombra do universo em expansão que explodirá um dia , brotará outro , mais primitivo ,sem a consciência humana que o defina , e outra espécie em algum planeta periférico aprenderá tudo de novo , com os mesmos erros até jamais se acabar onde um dia a sombra da terra ressuscitará em algum espaço dobrável do tempo em algum buraco negro que vomitará e dará à luz toda a memória de um mundo que jamais se acaba.

Contra a covardia

Contra a covardia

Não há medo que sobreviva
ao cotidiano enfrentamento
da falta de sentido .
Não há falta no sentido que se cria
Na doação sem cálculo .
Não há morte para a cotidiana ressurreição
Que rompe todo nada que tenta nos envolver .
Nada há que não seja criado :
Cria- se a justiça
, produto calculado do amor
que nos cria sem cálculo
a fim de destruir nossa íntima anemia .
Ao covarde resta a coragem
da anulação da epifania :
uma palavra , um gesto um ato
tudo é subvertido pela covardia.
Mas a criação desta noite
nos serve à esperança
do nascer de um novo dia .
Nenhum silêncio nos cala
Nem palavra maldita nos fala .
Nada há que não seja criado :
Desnatura – se a natureza :
tiramos da boca da nossa fome
O gosto da misericórdia
Com que alimentamos
a insaciada covardia
que busca nos devorar .
Saciamos nossa fome de perdão
Ressuscitando a quem nos quer matar