O que fazer

Nunca sabemos exatamente o que fazer
Porque nunca sabemos exatamente
o que é viver .
Mas fazemos e vivemos com a matéria
do que somos feitos .
obrigados a fazer
um sentido de viver.
Fazemos um filho , construímos uma criança
Lapidamos uma pessoa que nos constrói
e eleva
acima de nossa imprecisão .
Fazemos um sorriso em alguém
pelo simples gesto de delicadeza no escuro
que acende a luz dos olhos
que nos fitam e iluminam nosso olhar
para além de nossa cegueira .
Reproduzimos gestos ações
que serão filhos eternos na história
de quem nunca enxergou nossa dúvida .
Nunca exatamente sabemos o que fazer
mas sair de nós mesmos em direção a alguém
nos ensina o simples sentido de viver .

Acordar

Acordar
Erguer as pálpebras para um sonho real
Saciar o corpo com um café que esgota sua sede como o sonho que se esgota na boca
de sua consumação.
Acordar
Esgotar o sono do sonho que sempre se acaba em sua saciedade .
Provar o sonho de alguém
a fim de tornar menos amargo
o iminente fim do gosto do café
que se torna amargo em um solitário paladar
que sempre se cansa de seu sonho engolido
que se torna sonho fugido.
Acordar
Provar o gosto do café
na boca de quem se tenta amar
pra tentar voltar a sonhar.

Reconciliação

Sonhei que me reconciliava contigo . Recompunha e refazia
os gestos nunca dados
desperdiçados
na ausência de todo afeto envergonhado –
gestos espalhadas no chão da inação.
Recompunha o tempo perdido
no silêncio voluntario que
agora ergue o orgulho
E edifica a mágoa .
Sonhei que falava a simples palavra nunca dita que
erguia a ponte para você.

Todo o simples movimento de uma palavra não dita era consumado com a simplicidade de quem levanta uma história humana com
um mero olhar que recompunha a visão
sobre as poucas coisas que importam . Sobre as poucas coisas que existem .

No sonho , esparramadas ao chão
as falhas de comunicação
eram a ponte onde pisávamos
pra chegarmos às nossas mãos.
Mãos que agora esculpiam a reconstrução constante do que se perdeu em nós: alguma palavra que nos sustentava , ideia que nos embalava , amizade que nos atravessava .
A escultura da perda se arrebentava no sonho onde a realidade ainda berra
pra chegar à construção constante
de uma realidade entre nós.

Acordei e agora esculpo o ar
onde retomo tuas mãos perdidas
onde toco os gestos onde nos perdemos
onde arranho os gestos futuros
em que nos tocamos
onde o monumento do tempo
vai se destroçando aos poucos ,
indiferente ao sonho
tão próximo à realidade .

Alguma luz

Alguma fresta sempre deixa
alguma luz clarear
os contornos das formas na escuridão .
No sono , algum sonho esboça
um traço de realidade possível.
No silêncio imposto , alguma palavra grita
na ponta da língua , prestes a explodir
como um beijo que cala a boca do carrasco.
No abandono , na rejeição , na censura ,
no fracasso
alguma memória do que poderia ter sido
se projeta para sempre na esperança
que se espreita na sombra solar
da ação
que queima toda frágil treva do presente:
formas na escuridão se revestem
de alguma fresta que dá à luz algum
esboço de vida que teima
em jamais desaparecer .

Alguma fresta sempre deixa
alguma luz clarear
os contornos das formas na escuridão .
Olhos fechados e cores turvas teimam em negar a cegueira impossível .
Na sombra de nossas formas ,
tateamos a luz que entra na fresta
por onde enxergamos a esperança nascer .

Juramento

Choro por tua ausência
Que me desespera
Choro por tua presença
que me dilacera .
De vingança por meu desejo
sempre insatisfeito
juro que morrerei De Amor
e volto pra te assombrar toda noite
e te espiando nua no banho
Chorarei como as águas
que escorrem por teu corpo
E não tocam tua alma .
Juro que me vingarei
dos teus olhos que nunca me viram
te amando eternamente
na eternidade da tua indiferença .

Reflexo

O espelho se veste da tua imagem refletida .
Ideal que nunca te toca . Você ama no outro
o abandono da tua imagem intocada.
Amar é esta tentativa
de toque num outro
para além do reflexo intocável de si

mas o amor também tantas vezes intocável
no aço intransponível
da imagem do outro
que mora
do outro lado do espelho.
Você reflete
a vontade de amar:
Você é o espelho nu
que veste o desespero
de querer tocar
o que se quer a

Indiferença

Em nada o universo se importa contigo
Em nada teu patrão se comove
com teu trabalho
De nada tua primeira primeira namorada
se lembra de ti.
De nada o mendigo ou amigo
se lembra do sacrifício da tua doação .
De pouco a nada hão de lembrar
da tua existência quando não mais aqui estiveres
ou mesmo quando ainda aqui
caminhares .

Caminhas sobre a indiferença
de tudo que não te olha.
De tudo que deixa de te olhar .
Mas o universo , este que nunca te percebe
só existe por tua consciência
Dele – que te ignora .
O que sentiste por quem não te vê
repousa no esquecimento do que
nunca deixará de acontecer.
Tua doação , tua esmola sem cálculo
será tua vida esquecida
que pesa nos ombros do mundo
como uma eterna pluma que o define.

O eterno entedia

O eterno entedia.
Dou graças pois morro todo dia
Desejar a todo tempo teu olhar
cheira a coisa fria .
Bendito desejo morto que esfria
como cadáver boiando ao mar
de um pescado a se devorar

O eterno entedia .
Imortal é o véu que nega
o pedido infiel que eu me fazia .
Imortal é o tempo que me prega
ao vento , ao provisório fim
que sempre me sorria.

O eterno entedia.
Dou graças ao tempo fatal
que mata a esperança meretriz
e da à luz o aborto do mal;
a este instante feliz
que fugidio me excrucia.

O eterno entedia .
Maldita felicidade eterna
que impede a mansa escuridão
que fecha um velho dia .
maldita felicidade eterna
que não ilumina o tato como guia.

O eterno entedia.
Deus me livre do céu.
Que eu viva o terno instante ao léu
tatuado no constante
esquecimento
que ressuscite um novo dia.

Não sei bem o que sinto

Não sei bem o que sinto .
Finjo sentir bem a fim de melhorar
o que sinto .
Se desejo , creio que amo .
Se amo como permanente doação
anulo o desejo .
Se misturo , me perco
e me escravizo ao que creio querer .
Então finjo .
Finjo gostar para além do que quero
a fim de querer gostar do presente invisível
que a realidade me oferece
Finjo ser delicado
com tudo e todos que creio não querer
a fim de que meu querer ultrapasse
sua ignorância .
Aninho o que não sei
a meu respeito em outro corpo estranho
como abraço ao que estranho em mim.
Sou a sombra da tentativa de me enxergar
em outros olhos que desconheço .

Tudo se estranha em forma e conteúdo :

Uma estupidez se faz delicada
como um doce carrasco
que ataca tua honra
como principio de justiça.
uma sinceridade ofende – mas mostra-
teu erro como generosidade rude
que te abraça mordendo tua chaga.
A mesma sinceridade não reflete
aparente transparência do seu portador
onde transparece ressentimento do abraço que te esmaga

O amor toma a forma de quem ama
generoso na aparência da carência
do seu portador
calculista na intenção de retorno ;
opressivo e controlador em forma de
Cuidado.

Não há amor
que não sufoque a coisa amada .

Desconfio da minha intenção
como um santo que em sua oração
se põe a pecar .

onde o gesto real da doação?
Então calculo minha doação.
A fim de interpretar tão bem
o cálculo
a ponto de amar a ação fingida
de me doar .

Finjo mesmo o cálculo da confiança
em quem quiser me apunhalar.
Finjo por me saber miserável
que espelha a miséria comum
da nossa ignorância em não saber
nos encontrar.

Experiência

O não vivido deixa um rastro
à sombra que ilumina a memória da inação.
Os lugares que não frequentamos
nos habitam eternamente em busca
do teto que protege do que não enxergamos
que falta .
As pessoas que não escolhemos
as conversas e toques que não tivemos atravessam
o que deixamos de ver e por nossos olhos cegos enxergam o nada
que tocamos .
O não vivido deixa um rastro de afeto inacabado sempre presente na ausência
de quem nunca nos separamos .
( mesmo aquele que por descuido não amamos )
Morremos cotidianamente na vida não vivida
em cada cuidado destroçado , palavra não dada, gesto desperdiçado , olhar atravessado, sono alienado .
Escolhas nos matam e nos empurraram
a uma ressureição cotidiana
de bilhões de hipóteses enterradas
que nos sobrevivem .
O não vivido é como uma prótese
enxertada na memória de
tudo em nós e por nós abandonado
O não vivido nos completa
em nossa eterna morte incompleta .