Ciência e vida

Temendo a morte , o senhor passa de máscara só , no meio da rua .
A vida , sem mistificação ,
ronda seu cuidado .
A terra , só , no espaço , passa flutuando
ao redor do sol.
O espaço , sem ciência , ronda o tempo , indiferente
ao senhor de máscara .
O vírus , sem ciência , mistificação
ou justificação
ronda sem cuidado o senhor de máscara
e de cuidados redobrados.
Há 0.2 por cento de chance de morte no ar.

Passando pelo senhor , Um mendigo ,
sem máscara , seminu , sem ciência da terra , do vírus , da morte, dança só ,
ao redor de si mesmo,
sem razão aparente ,
sorvendo a luz do sol
que banha sua imprudência desmascarada. Há 99,8 por cento de chance de vida no ar.

Reality show

As paisagens se atravessam:
pessoas , ideais , sonhos se cruzam
onde falsamente abandonamos
como sombras atadas aos pés .
Nenhum olhar se perde
Nenhuma pessoa se perde
Nenhuma palavra cai
nenhuma intenção se esvai.
tudo se tatua para sempre
na memória do acontecido
tudo se projeta para sempre
na memória do intuído
nada se cicatriza
na memória do desejado
e não consumado.
Não há resto por onde passamos .
O caminho que trilhamos
nos atravessa eternamente.
Não há leveza onde nos escorarmos:
tudo nos pesa : uma boca um erro
um aceno um desvio.
Nem adianta sumir: os espaços ficam
na lembrança do caminho
por onde nos escondemos .
Nem adianta dormir ou mesmo
se suicidar:
a história fica lá
entranhada por onde nos percebem
sempre com este traço de equívoco
que coroa a sublime ignorância
de jamais nos sabermos
e indefinidamente estarmos
em tudo que fazemos e deixamos de fazer .
Não há desmemória que durma o fato
de para sempre estarmos acordados
neste sonho estranho
onde somos- por todos e nós mesmos
sempre gravados.

O juiz

O juiz publica sua sentença :
condena o réu pelo crime
do próprio juiz
que se absolve
na carne do inocente
que massacra.
Um falso condenado
pelas mãos do verdadeiro culpado
vaga na prisão na memória do juiz
que prende e tortura outro corpo
a fim de liberar sua culpa.
A vaidade do juiz anda à solta
amordaçando a justiça em seu nome
A democracia do juiz não se deixa tocar
pelo povo que mancha sua toga
A liberdade do juiz
oprime o povo
que clama por ela .

O carrasco a mando do juiz
fecha os olhos para a culpa
de suas mãos
que estrangulam a verdade
que brilha nos olhos do cadáver inocente
que assassina.

Contas a pagar

Contas a pagar . O imposto sobre teu trabalho que cai na conta de quem te rouba . O imposto sobre teu afeto que cai na conta de quem te ignora . A gasolina que aumenta e o teu entusiasmo combustível que diminui com A luz tão cara que não paga a treva do explorador que não vê a razão do teu trabalho. A boca do teu filho que alimenta a razão do teu trabalho . O preço do feijão que alimenta tua barriga que ronca pela fome de sentido do teu esforço repetitivo . O caro aluguel que não cobre a moradia do silêncio que te povoa ; o aluguel que não cobre as solidões que habitam as falhas de tempo e comunicação com quem te cerca ; o aluguel que mora no parceiro ressentido que mora no roubo do teu sucesso . O preço invisível pela doação ao parceiro que te trai . O salário impagável da doação do teu suposto fracasso pelo sucesso da empresa humana . Teu cão que ignora tuas contas e só cobra o afeto impagável da tua companhia

Mentes sobre a mentira

Mentes sobre a mentira
que ela repousa sobre
a opinião enganosa
que habita a sentença
que pariu tua visão de mundo
que queres empurrar para dentro
do útero da realidade
qual o revés de um parto
em que matas o possível
nascimento da verdade

Da realidade nasce
O imaturo feto da verdade
e sua eternidade tem cheiro
de uma breve e primeira idade:
fatos e juízes cobrem a verdade
de uma placenta pegajosa
que sufoca sua mobilidade .

Órfã , a verdade aprende a caminhar
sem pai nem mãe
passeando sobre a cegueira do juiz
que tenta aprisioná-la à sua sentença.

Nascer jamais se esgota:
de um feto abortado
fica a mágoa ressentida
cuja cicatriz aberta semeará
um novo filho
que embalará a esperança
que dará à luz
a uma sempre ressuscitada verdade

O choro de um sempre recém nascido
silencia
a sentença do juiz
que limita a verdade .
o primeiro toque breve
e delicado da criança
em sua mãe
ultrapassa toda prisão
da eternidade .

Crença

Não creio exatamente no que digo
Não creio exatamente no que faço
Não sinto exatamente o que creio sentir
Me imponho querer sentir crer e fazer
o melhor
que creio ser para mim e você .
Mas neste convencimento de mim
desfaço o que creio ser atuação
e acabo crendo em falsas mentiras
que me traço.

A virtude em que me peso
flutua no vício que tantas vezes
me empurra onde sou fiel
ao que me traio:

Um gesto forçado de carinho
acaricia a pele de uma boa intenção
e redime a preguiça de um corpo
deitado na descrença

Um gesto forjado de bom desejo
assassina minha pouca vontade
de querer viver
assassina meu desejo
de não querer me ver

Me forçando crer , me vejo
nas lágrimas que enxugo
em teus olhos quando
começo a crer no valor
do que interpreto
do que acho sentir por você .

Megalomania

Amanhã construirei castelos que desabarão
como a areia que ampara meus sonhos ;
areia levada pelo vento
que não destruirá a arquitetura do meu ideal; ideal sedimentado
no vento
que leva minha paixão ao espaço
ecoado no tempo

Amanhã Farei discursos que ultrapassarão
o sentido das palavras
e inaugurarão uma nova língua
que ditará uma nova tradução da existência que recriará uma nova humanidade em
nós .

Por ora , ensino uma criança a falar
a murmurar entre grunhidos
o sentido da falta :
a falta na sua fome
no seu desejo por um mundo
que obedeca sua vontade difusa
do que ela jamais tem exata consciência
de querer .
Ensino à criança os gestos
da construção do castelo
e a arquitetura da sua destruição
levada pelo mar pelo vento
onde repousa a memória eterna
de sua ação .

Ensino à eterna criança
O valor terno e eterno
de palavras inacabadas
e castelos furtivos
tatuados no vento
que chegarão
como brisa suave
acariciando um adulto .

Só esta palavra

Só esta tua palavra solta ao léu sem intenção pesa na alegria do moribundo vivo que o adorava .
O bife temperado pelo afeto da tia distante que ainda o adora salga tua indiferença.
O desejo que tens por corpos que não te enxergam espia o carinho no canto dos olhos
das poucas almas que te amam .
Os afetos pouco se comunicam e se espalham em poças rasas que juntas inundam uma vida . Muitos se afogam na sede cercados por um rio de água doce . Abra os olhos . Abra a boca . Sorva o rio de carinho e amor que te navega

Nada passa

Na verdade , Nada passa .
Nos atravessa a beleza , o encanto primaveril de um rosto de um gosto de um encanto
que nos arrasta
mas tudo fica como sombra
em busca de luz que não se acha
e intuída nunca nos basta

Nem mesmo o engano passa.
A ilusão sempre fica
como memória furtiva da vontade
de resgatar um momento
que traça a linha tênue entre a verdade
e a criação lírica
de uma maior realidade .

O beijo não acontecido jamais passa
A ação não tomada nos emprenha e devasta
O ideal iludido jamais se afasta
e ressuscita
como veneno que assassina uma estéril saúde veneno que respira em nós uma doença
que nos restitui nossa enganosa
e necessária crença
Em todo desvio que por nós sempre passa .

O tempo que criamos
O tempo que nos falseamos
O tempo que nos inventamos
a quem e o que nos misturamos
fica em nós como uma brisa
que nos trespassa
que violenta todo esquecimento
e revolve em nós todo momento
que nunca passa .

Sentido da vida

O sentido da tua vida é teu filho
que vai dizer
que o sentido da vida dele
é o filho dele
O sentido de vida é mais vida
que se devora no sem sentido de viver.
Sentido da vida é a ilusão de não morrer
não apenas no rosto do teu filho
que copia a paisagem da ilusão
da tua eternidade .
Sentido da vida
é a carícia ilusória
que se dá ao filho ausente
tão presente em cada rosto
que amas no instante
que não morre pela ação do gesto consumado
que não morre pela intenção do gesto tatuado
na esperança de jamais perecer