Não é justa nem boa nem correta
a beleza
que arruina e apaixona e humilha
as sombras vivas
em redor de sua luz .
Não é justa a luz da visão
que sucumbe à desesperada
fome da beleza que jamais sacia
sua fome .
Não é justo ao cego
que engula o injusto tédio
de não sofrer o trágico desespero
pelo belo .
Não é justa a vida em sua indiferença
aos que se veem desesperados
por fome de beleza –
a indiferença
aos desesperados por sofrerem
a visão da beleza que os humilha .
Como um Deus precário
o homem injusto
Inventa a misericórdia
que humilha a justiça :
emenda a bondade à indiferença:
oferece uma mão ao cego
que tateia a beleza humana
que agora enxerga com as mãos .
Como um Deus precário
o homem injusto inventa
a misericórdia que
tirar de sua boca o alimento
para saciar
quem tem fome
e cria uma estranha beleza
para além da busca
dos apetites dos seus olhos .
Não é justa nem bela
a justiça que pela misericórdia
não se supera .
Tempo e momento
Tempo e momento
Em um momento o tempo é uma sombra vista atada aos pés
: não o alcanço , não o toco
ele me ultrapassa e me escapa
quando me arrasta no gesto que se perdeu
ou se enterra na ação errada
que se deu
que se crava para sempre
na história do momento
que morreu .
Outra hora o tempo se congela no momento
no primeiro sorriso do filho
no primeiro beijo em quem se ama
ou no adeus do último beijo em quem se ama :
o momento então se eterniza
e para sempre
se revela.
Um momento assassinado se ressuscita
no perdão da boa ação que o embala :
um traidor que busca perdão
é o tempo redimido
é um momento redefinido .
O tempo é sempre um momento :
um instante um dia um ano um século
nada são para a infinita história do tempo
que concebeu o universo que funde
matéria lugar e o próprio tempo
num único e eterno
momento .
Nada somos diante do tempo
mas quem conta e concebe o tempo
somos nós que criamos nosso tempo
reproduzindo o nosso tempo no desejo
de um tempo melhor ao filho que geramos
ao amor que criamos ao lugar onde estamos
no amor que geramos nas pessoas
onde moramos .
O tempo sem nós é um lugar vazio :
Nós somos o lugar onde habita o tempo
nós somos o breve momento eterno da ação
que preenche e transforma o tempo .
Será amor mesmo ?
Será amor mesmo ?
Uma imitação de um desejo
que se aprendeu
que se mistura ao deslumbre
do espelho de uma carência
que mal nos enxerga ,
à vontade mesma de amar
que se cola na pessoa
onde amamos nossa vontade de curar
nosso buraco para além do eu que nos falta ou para que aprendamos a amar algo em nós que se perdeu
e se ganha no toque do esboço
do que queremos amar em nós mesmos tocando num outrro .
Mas sim será amor mesmo
porque uma invenção amorosa
ama da mesma forma
toca da mesma forma
o que ou quem queremos amar
ainda que nos fira .
E nos fere sempre o amor
porque sempre inventado
no que criamos sentir
porque cremos na nossa criação
porque todo o resto que não amamos
é uma invenção pior que o amor .
Produtos precários
Produtos precários .
A prostituta vende a ilusão sabida
de um afeto fingido:
quem ama de fato
compra seu ideal construído .
O jornalista vende fatos construídos
embalados pelo amor
à miopia de sua visão :
compra o leitor que absolve sua intenção .
O advogado vende a verdade do ladrão:
seu cliente que agride ou mata por amor
embrulha o ódio na maneira
com que rouba
o sentido de amar .
O juiz rouba sempre
um pedaço da história
que sempre condena
a própria miopia de sua sentença .
O cientista vende explicações objetivas
sem sentido a oferecer à graça da vida .
O psicanalista vende o inconsciente
que você nunca reconhece de todo
pelo preço do desejo que você castra
em nome da paz da civilização
que não te satisfaz .
O padre -como o psicanalista –
te vende a absolvição
pelo preço do desejo que você castra .
O filósofo vende perguntas e respostas inconclusivas ao preço
de mais perguntas e respostas
Inconclusivas .
o cirurgião plástico
costura por um tempo
um sentido de beleza que passa.
O poeta doa
o espanto sincero
sobre o que não entende
e sente. O poeta não mente :
costura a dor da falta de sentido
à trágica beleza breve
que nos arrasta .
A flor nunca vista
A flor nunca vista
dura pouco uma flor .
dura pouco sua beleza.
Aquela flor morre amanhã :
Morrerá para sempre no tempo
de quem viu
sua beleza única
preservada na memória
como cicatriz de sua passagem .
Meu amor nunca visto por você
é como a beleza de uma flor
nunca vista:
uma cicatriz eterna
de uma flor nunca colhida
pelos olhos que jamais tocaram
sua beleza que passou .
Entre o inferno e o paraíso
Entre o inferno e o paraíso
O recém nascido sonha com sua fome .
Toca sua felicidade
na sua simples vontade .
O limbo é não reconhecer a felicidade
de uma confusa verdade
do adulto que confunde sua vontade.
O limbo é um tédio fácil de lidar –
como um sono sem sonhos
embalado no ar .
O inferno é a felicidade por perto :
a vontade reconhecida no deserto
no oásis ao alcance da mão
à distância rejeitada de um toque
como um beijo suspenso no ar
na boca próxima que sorri do seu não.
O paraíso é o doce purgatório reconhecido
de saber que toda felicidade
varia de beijos suspensos na imaginação
sempre à espera de uma esperança
por outra boca a se negar ou doar .
O paraíso é a boca da espera
do sempre recém nascido
sonhando devorar outra esperança
como um oásis sempre a se entregar
As gaiolas da liberdade
As gaiolas da liberdade
O pássaro voa na gaiola
no espaço limitado de sua liberdade .
O pássaro voa no céu no espaço limitado
da gaiola do planeta .
Eu escolho livre
espaço limitado
de amar a mulher
com quem edifico a gaiola
de uma voluntária prisão de amar .
Minha voz livre é presa
a tantas vozes que assobiam
pela minha boca .
Meu desejo livre é preso
ao meu corpo e à vontade
ensinada da cultura
onde voa na gaiola
meu livre desejar .
Meus olhos enxergam
o espaço limitado pelo meu olhar .
Meus olhos jamais verão
as galáxias que só
minha livre imaginação
se põe a sonhar .
Um sabiá tem os olhos furados
para melhor cantar .
É livre quem melhor enxerga
a dor da cegueira de sua gaiola
para melhor voar .
Carnificina
A vida se devora
o tempo se come
nos desperdícios da hora
no erro póstumo
do incalculável agora
A vida se devora
no amor
que morre e se renova
num outro desejo que se implora .
Um bicho come o outro
para sobreviver
e esquecer a morte de quem devora
O bicho vive na eterna permanência
da angústia do agora.
O bicho humano se canibaliza
na confusão da hora :
sua vida se alimenta de vida:
Você se doa comendo teu eu
e a sombra da indiferença
de um outro
come a tua aurora .
O seu amor se alimenta e se devora
no desejo que se reproduz
na vontade da eternização do agora.
Agora e sempre a vida implora
a cegueira das mãos que esculpem
o sentido de viver
a vontade de permanecer
que seus olhos e mãos devora .
Cleriston o inocente
No Brasil todo dia morre um inocente
No Brasil todo dia se condena um inocente
Cleriston Era um inocente .
Morreu por sua inocência .
Seu crime era não saber
por onde gritar sua esperança.
Seu crime era não saber
Por onde agir sua esperança.
Não eram inocentes os que assassinaram
Sua liberdade .
Não eram inocentes
Os que mataram
o lugar da esperança de sua liberdade
Sabiam seus assassinos
dizer da liberdade
da justiça ,
do governo do povo
que esmagavam com justas palavras .
Não são inocentes os que silenciam sua morte
comunicando a culpa
dos que podem dizer algo
dos que podem fazer algo
e nada dizem
e nada fazem
O lugar assassinado de cleriston
era sua procura desesperada
pela ação que traduziria
a palavra justa de sua libertação.
A ação exata da palavra
que libertaria seu povo
do lugar de injustiça
que o encarcerava .
cleriston nunca achou
a justa palavra
a justa ação.
Trancafiado
em sua busca por liberdade
Não soube dizer
dos assassinos que tão bem falaram
e tão bem mataram a sua liberdade por viver .
Cleriston Pereira da cunha
é hoje e sempre
um inocente .
uma viva palavra inexata
da liberdade de seu povo
Que teima em não morrer .
Interrupção
interrupção
Não há fim propriamente .
Há sempre interrupção .
Tudo se interrompe para voltar
ao que era renovado e distinto .
Uma criança é interrompida
pelo adulto que a molda
mas nunca se finda
a curiosidade infantil
pelo sentido da vida .
O adulto brinca saber
criando sentido
para o que desconhece
criando deuses à imagem e semelhança
da bondade que o embala
e sua ignorância arrefece .
A luz calorosa do dia
é interrompida pelo descanso
de uma calma noite fria .
Um beijo se interrompe
porque o prazer eterno
seria um fim de vida .
O beijo interrompido
abraça o início da promessa
de algo como o amor
que também se interrompe
como a luz que se apaga
pelo descanso de uma noite fria
esperando o nascer de um novo dia .
Uma vida se interrompe .
Amigos pais amores ideais
se vão para voltar outros –
ressuscitados na memória sem interrupção
ou na aprendizagem da traição
– traição da morte , da ação –
onde sempre voltam no perdão .
Um filho mesmo se vai para voltar
criança interrompida
para ser teu pai
a lhe cuidar
na interrupção de tua vida .
não há fim .
Tudo é provisória despedida.