Ninguém sabia
o que ela pensava
ou sentia .
Nem ela se pensava.
E se ria
do que
nem sequer
sabia se sentia .
Não se preocupava
em se decifrar
porque se devorava
no que de si se escondia .
Comia tudo
que não compreendia .
Talvez a exclamação
de seu segredo
fosse a dúvida
que a quem a amava
respondia .
Sua beleza óbvia
que sua sombra revelava
que sua pessoa
de si mesma
a escondia
também a devorava
na solidão de sua orgia .
Poema do amor estranho
Te amo tanto quanto te desprezo .
Tuas palavras banais , teus conceitos fetais tuas ações boçais
não conseguem salgar o doce
do gosto superficial e sublime
de cada gesto teu
que me deslumbra
e ultrapassa toda linguagem
ao alcance da razão.
Te amo tanto quanto me desprezo
ao te amar .
Tua superfície escancara um fundo
onde não me reconheço
e revira todos os meus conceitos
que se evaporam ao sol do teu encanto
que queima meus olhos embevecidos
com a própria cegueira .
Te amando amo não me entender
Tento ver teu fundo
e só enxergo o abismo
do que não sei de mim:
o abismo do que não sei
do que desejo em ti .
Amo em você não me reconhecer
Amo em você
destroçar minhas certezas
Te amando mato cada princípio lógico
que em mim habita .
Te amando
sou um cemitério de certezas
que apodrecem na Ressureição permanente
do teu cadáver que teima
em viver em mim .
Amo em você o princípio de me odiar :
Odiar a casca que envolve o narcisismo estéril
do que penso saber de mim , dos outros , de você , de tudo .
Tudo em você me convida a uma pergunta desesperada
que jamais respondo
sobre
a fundação do meu desejo ,
do meu sentido de viver ,
do meu precário sentido
de não querer morrer –
por teu desgraçado encanto
que me faz querer a mim mesmo sobreviver
Amo sobretudo minha rejeição fracassada
em tentar não te amar mais
nos odiando e amando
para fugir de toda tediosa paz .
Falha de comunicação
As palavras falham . O desejo nos trai . As ações emperram ou tomam outro rumo
que não o desejado . O jeito errado . O momento errado . A palavra errada na ação errada . Tudo gestado na intenção certa. Tudo falha de comunicação . Nunca se diz plenamente o que se quer dizer porque palavra alguma traduz a construção de um sentido que sempre falta . E sempre falta algo . Algo no teu gesto , ação , vontade , palavra que nunca restitui o que falta .
Falta alguém , teu pai , teu amigo , tua mulher , sumidos por morte ou traição . Falta você na tua doação , na vontade de se entregar que te esqueceu no caminho na tua boa intenção .
Tudo falha de comunicação . Poucas são as pessoas ruins . Todas são as que tentam dizer pra si e pra quem amam ou querem amar a maneira certa de sua melhor intenção
Na criação do mundo , Deus criou com perfeição a falha de comunicação para que víssemos o que nos falta. O vazio falho que nos olha é a misericórdia que nos une: miséria compartilhada entre nós que nos une em nossa sublime imperfeição .
O silêncio que te escuta
O universo é indiferente a teus pedidos.
Tuas súplicas tuas promessas teus sacrifícios
ecoam no silêncio de uma pedra
que te responde imóvel à tua insistência
em procurar um milagre na natureza
que insistes em sacralizar
O universo não se move
a não ser como pedra que manipulas
ao prazer do teu desejo.
Mas teu desejo não molda o universo
que moldou tua consciência
do universo
que não te escuta
e não te obedece
Quem te escuta e não te obedece
é o desejo de um outro ,de bilhões de outros
desejantes como tu
que escutam o silêncio de pedra
que não se molda
à falta de desejo do universo
que concebeu vocês
O universo é o nada inabitado de vontade
onde habita a tua ação desesperada
pela satisfação do teu desejo
que depois de consumado
sequer desejas tanto mais assim.
O universo é o nada inabitado do teu desejo
onde procuras o sentido do teu desejo realizado ou fracassado
onde desejas desesperado
o sentido do silêncio universal
que te escuta
Tu então te ris da indiferença do universo
que concebeu este ser desejante
para escutar o silêncio
do ventre que te nutriu e à tua fome
Campos de concentração
Aviso redundante e desnecessário : isto é um poema . Com milhões de significados latentes .
Milhares ali reunidos ,todos inocentes da sua culpa , inocentes de sua razão , sem saber pra onde vão porque estão onde estão
Ninguém sabia ao certo qual o crime cometido , qual a nova ordem proferida , qual a razão da lei cometida contra eles que se julgavam justos ou afeitos ao comum das normas
Ali a liberdade era a do toque , do olhar de interrogação , liberdade de desespero tácito comungando entre as certezas vivas que se entreolhavam em misericórdia . Liberdade de interrogar em comunhão o desespero que os prendia .
Sabiam todos que iam pro cadafalso
como todos sabemos
que morremos no fim
mas nos agarramos a algo no meio
que nos aleita antes do cadafalso:
um olhar de esperança um gesto de carinho uma pequena sopa de justiça
O caminho para o fim era e é um eterno começo . Fim mesmo era deixar de caminhar
mesmo no pouco espaço de sua cela .
Ali , entre os milhares
Um cão fiel a seu dono lambia sua falta de consciência em forma de fidelidade e afeto
Ali , uma criança presa perguntava a uma mãe
a hora de ir embora .
Ninguém vai embora de seu lugar . Os lugares nos habitam . São as pessoas que fazem os lugares. Nós somos os lugares .Não há paraíso que resista a angústia de uma solidão acompanhada . Não há solidão ou angústia que resistam a um toque de uma mão que caminha na cela aberta a uma esperança .
A pior tragédia
A pior tragédia
Ali ao lado , algo , alguém , um instante , uma chance perdida cujos olhos por que passou e não viu e perdeu e poderia ter salvo você , redimido tua miséria , reinventado a tua vida .
Por descuido , desatenção ou cegueira voluntária , você desviou os olhos , não acenou de volta , recusou o convite de uma tarde que poderia reinventar teu destino .
A pior das tragédias : aquela quase invisível , sutil , que você pressente na tua omissão , na tua negativa , no teu dar de ombros ,
Aquela tragédia quase invisível tão suave que você sequer precisa se perdoar porque só sente um cheiro leve de culpa que nem ao menos desamarra teus sapatos mas sem que você saiba de todo , arranca o chão dos teus pés , arranca o caminho que poderia trilhar
até o melhor de si .
Você ainda anda , segue a vida , assobia
o cálculo blasé do teu destino , sente que perdeu algo: talvez tudo .
Você ainda anda , reconstruindo , fingindo não saber , a chance eternamente perdida em cada aceno : a algo , alguém , onde você planeja reinventar o que perdeu eternamente .
A eternidade está em toda parte
A eternidade está em toda parte .
a eternidade se alimenta da morte:
de um momento que morre e ressuscita recriado eternamente na lembrança
e na esperança de se repetir
sempre diferente :
o momento vivido amadurecido
como um fruto que nasce verde
e apodrece mas guarda o sabor
do gosto que cumpriu sua boca .
A eternidade jamais devora a fome
das frutas nunca provadas
das bocas nunca beijadas
que nenhuma eternidade sacia .
O gosto fica na eternidade.
A fome fica na eterna vontade.
A morte não tem idade:
a morte nasce sempre
pra nunca mais desaparecer .
Cada instante acontece e morre
em seu momento
Cada acontecimento jamais desacontece:
uma folha que cai ergue seu momento
para sempre .
Um beijo provado jamais abandona seu gosto
Um beijo negado jamais abandona
a boca de sua fome.
O gesto de heroísmo ou generosidade
que não deste percorre um arco
na lembrança eterna das ações abandonadas .
A eternidade entedia e desespera:
ela não te esquece nem te abandona
nem na tua memória envelhecida
e carcomida
pelos frutos podres da tua omissão.
Ela te segue nos amores
que jamais se realizaram
e se eternizam
utópicos e idealizados
no que poderia ter sido e não foi .
A eternidade vive
na esmola de um gesto que doaste
a um amigo que te esqueceu
mas que se tatua na tua virtude .
A eternidade do sono
de uma vida desperta
povoa
o sonho de despertar
antes do beijo acontecer
antes do teu filho nascer
Depois que você morrer .
A eternidade se alimenta da morte:
de um momento que morre e ressuscita recriado eternamente na lembrança
e na esperança de se repetir
sempre diferente :
a morte não tem idade:
a morte nasce sempre
a cada instante
pra você sempre reviver .
Nós os crentes
Nós os crentes
Vc crê no mesmo que eu creio :
Na dúvida consciente
Na possibilidade de um Deus
que espelhe a potência de bondade
que reside em você .
Você crê que bilhões de galáxias
não surgiram do nada.
Você cria um
sentido palpável
de uma criação divina e generosa
de um deus que se cria
à imagem e semelhança do teu esforço
em ser bom
que nunca chega à perfeição
da bondade que você se cria
e ultrapassa sua mediocridade
Você crê
na possibilidade da recompensa de um bem
que se satisfaça por sua ação mesma .
Você crê na possibilidade de um céu
aqui mesmo na terra espelhado
nos olhos do teu filho
No amor doado mesmo não retribuído
por quem crucifica tua doação
Você crê na realização de um ato de bondade
esmagado que seja pela realidade
mas que supera toda felicidade
pela dor mesma que sustente
o peso de estar vivo e não se saber por que
Você crê num amor
que sustente toda pergunta sem resposta
pelo peso de sua divina criação
Você crê na castração da tua vontade
que sacia a humilhação
do desejo que te invade
que sem saber por onde
castra tua humanidade
Você crê na tua cegueira
que à reboque da luz que te invade
não permite que veja
uma incompleta realidade
Você crê na tua vontade de crer em algo
que sustente o nada que não existe em você
Você não crê no nada que não reside
em lugar algum onde você não esteja
Você crê em todos os lugares onde não esteja
que não enxerga de todo
mas sabe que estão lá
Você crê nos amores que não viveu
e não enxerga de todo
mas sabe que estão lá
Você não crê no nada que não existe
que não habita lugar nenhum nem ninguém nem no Deus
que você pode criar pelo teu amor
Você crê
em Você e em quem você tenta amar
pra construir a tua crença .
Mãos e pedras
Cada pedra , uma queda no caminho
Cada queda , uma mão que desce
e te ergue um destino
Cada destino , um desvio
que lapida o caminho rumo à mão
onde estendes a outro caído
a lição da pedra.
No caminho, olhamos em frente
Na queda , olhamos ao céu
e nos olhos de quem nos dá a mão .
Nos olhos de quem levantamos
Olhamos o céu espelhado
No caminho que trilhamos
um no outro
Caminhamos
sobre as mãos que nos levam ao céu
O virtuoso enrustido
Sinto que Será em breve a sutil vingança
dos que me rejeitaram,
Dos que não me viram
Dos que não me tocaram
dos que não vislumbraram
o grande homem em gestação
que ainda não me tornei
Sinto que Será em breve a discreta vingança
dos que não me amaram
pelo amor em potência
que ainda não derramei
pelos que tentei amar
e não me notaram
Sinto que será em breve
a construção do homem virtuoso
Cheio de méritos
que hei de me tornar
capaz de saborear a vingança
em silêncio elegante
sobre os que não enxergam ainda
a virtude que ainda me há de brotar .
Enquanto a vingança não vem ,
Me perdoo pela virtude que não me brota
Me perdoo por não saber agir
Na situação que não compreendo
Me perdoo por não querer compreender nada
que não seja minha dor e desejo de vingança
Me perdoo por
ainda não saber perdoar
quem ainda não vê
o grande homem
que ainda não me tornei
que ainda hei de torn