Tudo é da minha conta
Discrição é um mito.Porcamente
fabricado.Manipulado por gentinha sem grandes ambições de espírito e
escassos de virtudes.Ora, se, como dizem os gnósticos, tudo é
manifestação divina, ou, como dizem os ”quânticos”, toda a matéria se
coaduna, então tudo é da minha conta,desde a derrota de Napoleão em
Waterloo ao problema de ejaculação precoce de um vizinho.Todos os
assuntos, todas as pequenezas, grandezas, minudências , particularidades
da vida alheia são do meu interesse.E quem é que vai mensurar aquilo
que é ou não do interesse coletivo? Um indivíduo? O Senso comum? Prefiro
meu próprio escrutínio, me basear em minhas idiossincrasias a
confiar nas idiossincrasias pseudo-normais do populacho que faz
apologia ao ‘’apelo universal’’’.Prefiro o meu universozinho particular,
uma vez que o Joseph Campbell já dizia que o universo conspira a
meu favor.
Me transformei em jornalista para isto mesmo:para dar
uns ares de sofisticação à minha mania obsessiva de revirar aquilo
que os socialmente corretos dizem não me dizer respeito.Mas até no
jornalismo descobri , para meu desgosto, regrinhas éticas elementares do
”zé povinho do interesse comum”.A questão é que se me dizem que o
negócio não me diz respeito, aí é que eu me interesso mesmo.É de uma
simplicidade freudiana elementar, percebem? A vida sexual alheia, o mau
hálito do meu inimigo, a sarna secreta de um conhecido, a falha dentária
da musa do telejornal, tudo é matéria do meu interesse.Eu, pedante
contumaz, aprendiz de literato, acredito que a base de toda a
literatura, e , por conseguinte, de todas as demais artes, é mesmo o
fuxico, a curiosidade patológica sobre os detalhes sobre tudo e
qualquer coisa que nos cerca.Por que fazer um poema sobre um pôr do
sol ou sobre o canto do bem-te-vi, se se
pode construir uma epopéia sobre a suposta infidelidade da
mulher de Ulisses?A arte é a prova absoluta que só o fuxico e a
indiscrição produzem maravilhas na história da humanidade.Arte discreta é
coisa de árcades pós-enrustidos. Homero já sacava muito bem deste
prazer encantador que é meter o bedelho na vida alheia e ainda
foi bem copiado por Joyce, o fuxiqueiro pós moderno.
A indiscrição tem inclusive um certo mérito de
pesquisa empírica, de desbravamento, de aventura e heroísmo pessoal.Só
um virtuoso de fato tem méritos suficientes para ser um bom fuxiqueiro e
desbaratar o universal naquilo que aparentemente não é da conta de
ninguém,e que, no fim das contas, se transforma nos mais augustos
interesses da arte,e, por conseguinte de novo, da humanidade.Só os
heróis se metem na vida alheia e fuxicam.Os medíocres e comezinhos
espiam discretamente, pisando delicadamente em ovos, para não
perturbarem a vida privada do vizinho broxa.