2005-12-20 22:08:00

       
  

Sem madeleine

Não tenho saudades de nada nem de
tempo nenhum.Tenho inclusive uma certa inveja daquele sentimento
proustiano de perceber o passado inteiro através do gosto de um biscoito
molhado no chá.Muito sofisticado e lírico e tal, mas os sabores que me
remeteriam a tempos remotos são repetidos ad nauseum, uma vez que, até
hoje, não vou muito além do leite e do suco de laranja.O passado apenas
se descortina diante de mim tal e qual uma possibilidade desperdiçada ou
mal aproveitada.Só me lembro de alguma coisa para em seguida me
arrepender dela.Benditos os mentirosos que dizem que nunca se
arrependeram.Eu me arrependo até de ter nascido às vezes.

Além desta falta de saudosismo e deste arrependimento
permanente, ainda me sobrevêm sentimentos mesquinhos de vingança
póstuma.Por exemplo, minha primeira paixão de adolescente com quem
troquei(ou partilhei?) meu primeiro beijo.Tudo muito bonitinho até ela
me trair com um primo meu.Pois bem.Qual não foi minha agradável surpresa
ao vê-la, anos depois, balofa com dois filhos horrendos passeando pela
cidade e o tal primo infame, por sua vez., casado com uma senhorita tão
cafona e horrenda que faria Yoko Ono saltitar de vaidade.

O passado sempre me vem retalhado de erros, confusões
, incompreensões.Quanto mais longínqua minha memória, mais forte a
impressão de que eu me comportava como idiota.Pior:a impressão-mais
terrível ainda- de que eu me dava com e admirava gente que hoje
considero patética.Tenho, por exemplo, e ao contrário de noventa por
cento da humanidade, pânico, pavor e horror da minha infância.A
dependência intelectual é a pior das prisões possíveis.Toda criança é ,
por definição, uma imbecil prisioneira de seus tutores.E a fase
seguinte, a adolescência, consegue ser ainda pior.Não tendo suficiente
estrutura intelectual para se perceber dentro do mundo e achando que já
tem esta estrutura, o adolescente parece uma gelatina, um amálgama de
posições conflitantes que já se julga ciente de si.Todo adolescente é um
coitado chato ou alguém que, por excesso ou falta de opiniões, nunca
sabe o que dizer ou sempre diz o que não devia no momento errado.Tudo
isto sem contar as espinhas e as roupas pavorosas.

Gosto mais um tiquinho de quem eu sou hoje em dia.Mas talvez seja
ilusão.Possivelmente daqui a alguns anos ,me julgarei tão imbecil quanto
agora julgo quem eu fui no passado.Bem, mas isto é preocupação do
futuro.Já bastam o presente e o passado para me atormentarem.

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