Menos verdade, por favor
Todos buscam e perseguem a verdade,
ou pelo menos fingem que.Psicanalistas, religiosos, filósofos,videntes,
juízes de futebol, juristas(estes nem tanto).Com maior ou menor
intensidade, a busca da verdade chegaria a ser tediosa, não fosse nociva
por vezes.Algumas revelações e epifanias deveriam ficar debaixo do
tapete mesmo.Uma verdade desagradável não tem muita serventia a não
ser desagradar de fato.Não faço aqui apologia da cegueira ou da
imbecilidade, estados sólidos da não aspiração à verdade, mas digamos
que algumas informações factuais são mais que desnecessárias, dependendo
do contexto.
Verdades desagradáveis como as milhares de cartas e
revelações públicas da vida sexual e amorosa de Jean Paul Sartre e
Simone de Beauvoir, que constrangeram dezenas de amantes usados ad
nauseum para satisfação don juanística do ávido casal
existencialista.Ah, a verdade factual da vida comezinha de filósofos,
poetas e artistas em geral é sempre decepcionante.O mundo das idéias
abstratas, ainda que sejam idéias realistas, é sempre mais fascinante
que a verdade bruta dos fatos, justamente porque uma verdade concebida
se apóia no etéreo, no imaterial.Uma verdade palpável geralmenrte é
pegajosa e malcheirosa.
Alguma hipocrisia é mais que necessária à manutenção
de uma sociedade salutar, do micro ao macro.Traições conjugais, por
exemplo, são quase sempre inevitáveis em determinadas ocasiões.Uma vida
inteira de fidelidade é patológica.A única fidelidade possível é a
fidelidade aos próprios instintos.Sim, sim, às românticas leitoras de
‘’Sabrina’’, já respondo que de fato o amor é uma relação patológica em
si.Mas falo de instintos, e estes são, em maior ou menor grau,
irrefreáveis, mas controláveis socialmente.E este controle implica um
certo grau de mentira tácita, participativa, partilhada por um
casal.Contar ao cônjuge que desejou ou mesmo que tirou uma casquinha
física ou metafísica do objeto excuso de desejo é uma terrível falta de
educação.Pior ainda quando praticados em nome de alguma filosofia, como
fizeram os famigerados Jean Paul e Simone.
Bem, já repararam que não falo aqui de verdades
superiores, transcedentais.Estas são de ordem mais esquizofrênica, do
tipo religiosa.A verdade comezinha é a que se pode tocar.E eis o
ponto:suponhamos que você veja um montículo de cocô na rua.Você percebe
pelo aspecto, pelo cheiro, que é cocô.Mas você não apalpa o cocô para
ter uma prova empírica da existência do dito cujo.Assim com certas
verdades factuais.Pode-se até pressentir algumas delas, mas pode-se
circunscrever o nível de necessidade de aferição desta verdade e não
entrar muito no seu mérito mais profundo.Não é de bom tom, nem mesmo
agradável buscar detalhes de uma traição, assim como não se é adequado
investigar as origens do fracasso ou do malcaratismo de alguém.Alguns
problemas irreversíveis são mais afeitos à paliativos, a remédios que
atacam as consequências, não as origens.
Por isto a psicanálise é um tratamento sofisticado
para verdades comezinhas;por isto a psicanálise não funciona direito.A
mistura entre absoluto e factual sempre soará meio esquisita.Freud foi
um grande literato e pensador, mas talvez tenha sido um cientista meio
desnecessário.Suas verdades reveladas já eram mais ou menos deduzidas.Há
algo de podre em verdades impudicas do inconsciente humano que talvez
fosse melhor ser deixado por lá mesmo, apodrecendo nos grotões.Pelo
menos enquanto a coisa não cheire mal a ponto de perturbar os
vizinhos.
Eu, cá por mim, convivo bem com minhas patologias ,que são suaves e
controláveis socialmente.Já me bastam de descobertas.Prefiro certos
confortos e certos prazeres a certas revelações.Um segredo sabiamente
escondido por vezes pode ser bem melhor aproveitado que uma verdade
manifesta.E geralmente o é.