Usos devidos e indevidos
Há, se é que se pode chamar assim,
um certo nível de cafajestismo inerente a todos nós.Digo no condicional,
porque é preciso ver se o que se chama de cafajestismo se aplica
aqui.Seguinte:típica conversa de moçoilas casadoiras e encantadas com o
pré príncipe encanado ainda em estado de sapo, daquelas que dizem que
estão fartas de serem usadas.Ora, meninas, em verdade vos digo(bíblico
assim mesmo): todos usamos uns aos outros o tempo todo.Não só moçoilas
enamoradas, mas também amigos, parentes, inimigos, etc. Tudo é matéria
de uso para aprimoramento pessoal.Assim também com o amor, que em estado
embrionário nunca é percebido de imediato.Para isto existe o uso
providencial de potenciais amados e amadas, até que possam desabrochar
ou não os affairs trágicos , luxuriosos e epopéicos.Até porque não se
ama à primeira vista o tempo todo.É preciso experimentar, olhar a
embalagem, o recheio e depois provar do remédio para ver se
funciona.Perdoem a falta de poesia e a linguagem meio cafajeste, mas as
coisas são assim mesmo.Tudo e todos são material de uso humano.Eis aí a
potencial cafajestice de cada um.A contínua descoberta de uns por outros
e de outros por uns.
Mas falando de usos amorosos, especificamente.Claro
que uns enfrentam sérios problemas de cegueira e ingenuidade patológica,
e compram sempre e tragicamente gato por lebre.Pobres destes cuja sina é
usar os produtos podres, de validade vencida, que em vez de
remediar , fazem adoecer mais da solidão nossa de cada dia, e da
pior solidão, da solidão acompanhada.Talvez sejam até mais felizes de
uma maneira torta e gostem desta doença(que não é o ‘’pathos’’ de
paixão, mas uma gripe enfadonha, ou mesmo uma tuberculose incurável).Mas
ninguém, nem mesmo os mais atentos estão livres dos efeitos colaterais
de usos devidos e indevidos.Todo mundo de fato faz uso de placebos, de
primeiros usos de primeiros remédios.Todo mundo é cientista e
cobaia ao mesmo tempo.Pulando a linguagem farmacológica, há quem
use e goste de ser usado, há quem é usado e não goste do uso, e há os
que usando, fazem mal ao objeto usado, e há os mal utilizados, que
estragam no primeiro uso.Mas usar, todo mundo usa todo mundo.Até que
apareça aquele grande, rotundo e verdadeiro amor, todos estamos
condenados a um imenso laboratório de testes, sujeitos a passar de mão
em mão, algumas sujas, outras nem tanto, e também a nos desapercebermos
daquelas mãos que melhor poderiam nos manusear.Algum erro de cálculo,
claro, pode ser fatal, assim como algum uso indevido, dependendo do
material usado e de suas vicissitudes e idiossincrasias.
Por tudo isto, gentis moçoilas sonhadoras, é preciso
saber perdoar um certo cafajestismo intrínseco que não é tanto pela
canalhice mas pela natureza humana mesmo, natureza esta que também é
vossa, gentis moçoilas.Vós também usais e abusais de tudo quanto vêem e
de cada amor à primeira vista que tendes(são às vezes tantos,
não?).Aliás, as moçoilas são talvez inconscientemente muito mais cruéis
no uso que os mancebos quando enamorados.Regateiam carícias, fazem
beicinho, dizem nãos povoados de intenções positivas, enfim, jogam um
antigo jogo que elas acreditam imperceptível mas que já tem barbas de
tão velho.E os jovens mancebos, tolos enamorados, caem na velha
armadilha, não porque ingênuos, mas porque afoitos dos tais usos
devidos e indevidos.
Tudo isto é muito óbvio, mais que elementar, mas ninguém fala
nestas coisas com medo de sujar as mãos ou conspurcar os ouvidos
castos.Mas vez em quando, é bom tirarmos as máscaras um pouquinho, um
tantinho só, só para respirar e depois continuarmos o baile.