2004-09-18 19:58:00

       
  


A um artista em potencial

Um amigo avançou em minha direção com os olhos vidrados e
com um amplo sorriso estampado , me disse euforicamente: ‘Adrilles,
eu sou muito mais infeliz que você! Minha dor é muito mais profunda que
a sua!’ Eu sorri .Com um alegre entusiasmo destes, não poderia haver
infelicidade que lhe fizesse frente.

Este amigo, que tem certas inclinações artísticas, pensa que não
poderá realizar suas aspirações se não for uma pessoa sofrida e
amargurada, que a arte só nasce da dor.O trágico, para ele, é que ele
tem certa razão.E o mais trágico ainda é que –que ele não me ouça- ele é
uma das pessoas mais realizadas e felizes que já conheci.

Não existe arte sem dor, sem contradição, sem miséria humana.A grosso
modo, pode-se dizer que a arte nasce destes elementos.Pode parecer
masoquismo, e é mesmo.A estética de uma obra de arte é, na verdade,
a estética do masoquismo, do prazer catártico em contemplar o
sofrimento , a angústia humana.Claro que esta dor não vem sempre
refletida com as tintas carregadas de uma tragédia.A dor exposta pela
arte se apresenta sob várias formas: a ironia, o desepero, a
melancolia,o humor negro, a comédia, o sarcasmo, etc, etc.Todas
estas maneiras distintas de apresentar a perplexidade e incompreensão
humana diante da vida.Sim, o clichê é pesado, mas é a pura verdade(o que
é um clichê senão uma verdade repetida ad nauseum?)

Mesmo uma obra de arte que eventualmente celebre a vida não se
sustenta sem a presença de uma dor que perpassa a obra.Algumas telas de
Picasso, algumas sinfonias de Beethoven são exemplos viscerais neste
sentido.A arte sobrevive sem a felicidade, não sem o sofrimento.Arte sem
dor não é arte, é entretenimento.

Não há sexo sem dor, sem um elemento de
sado-masoquismo sempre presente.O ato sexual é por definição uma
violação, não?O mesmo ocorre com a arte:o prazer sádico do artista, o
‘’ativo ‘’ da relação que nos joga na cara o
sofrimento universal, e do contemplador, o ‘’passivo’’, o coitado(
na acepção literal da palavra), que somos nós, que recebemos, com mescla
de dor e prazer, a obra artística. Espectadores
artísticos,somos  tal qual  uma mulher complacente, ávida
pelo coito sadomasô que nos oferece uma obra de arte.

A rigor, acredito que há apenas três tipos de
sofrimento que eu respeito e julgo como tal:rejeição amorosa, pobreza
material e doença terminal.O resto é fricote.Meu amigo citado,
”infelizmente”,é endinheirado, vende saúde e se dá muito bem com
as mulheres.

Mas vejam só:Picasso era um homem aparentemente muito
feliz e realizado, o que não o impediu nunca de deixar de observar a
dor alheia(e a própria, claro) e transformá-la em arte.A
definição de ‘’antena da raça’’ cabe perfeitamente aqui.O exemplo é para
dar certo alento a este amigo meu, preocupado em ser infeliz para se
tornar grande artista.E se for mesmo necessário ser infeliz para fazer
arte, azar o da arte, ora.

 

 Escrito por Adrilles Jorge às 01h18
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