Fetiche

Nenhum todo existe. Um planeta é parte de uma galáxia . Uma galáxia é ínfimo pedaço de um universo. Tua palavra de ódio , teu sorriso de afeto , tua lágrima de perdão escorrem em pedaços que jamais construirão todo um sentido .

Enxergo um pedaço . E amo um trecho de um caminho que jamais chegará a você inteira . Enxergo um trecho da história , de uma ideia , de alguém e sigo por onde me perco.

Uma parte espelha a criação de um todo. O quarto do filho que se foi redescobre o caminho da volta de um amor que jamais se perdeu .

Uma foto tua abraça a vontade de tua companhia.

Um mísero pensamento sobre o universo que nos ultrapassa abraça o infinito que sempre conhecemos – em sua ínfima parte que descobre a criação do todo:

O abraço em que te envolvo abrange todo o universo que desconheço – mas percebo – no fundo dos teus braços onde me deixo .

O Universo que nos envolve no pedaço de amor que nos deixamos é abraçado por todo Deus onde nos criamos

Superação

Aquele homem tomara o teu lugar . É mais jovem , mais belo , mais inteligente e talentoso que tu . Beijará a mulher que sempre quiseste , herdará teu emprego , tuas posses , tuas virtudes e melhorará a espécie. É justo que sejas superado . É além de justo que A ti , caia a misericórdia dos que são melhores que tu.

Aquele outro , menos talentoso , menos virtuoso , mais mesquinho , mais medíocre , também tomará o teu lugar . Por um tempo que premia a mediocridade , ele beijará a mulher que amaste , herdará teu emprego , tuas posses , roubará o mérito de tuas virtudes , pelo brilho de seus vícios.

A ti , caberá a justiça do perdão ao tempo que lhe atraiçoou e a melhoria do homem que – pior que tu – te abençoou com as ferramentas para a construção de um homem melhor.

E então , miserável e ultrapassado pela injustiça e mediocridade dos tempos , tu te tornarás melhor que a ti mesmo , melhorando o tempo que te abrigou e sacrificou .

A construção da espera 2

alvez não seja a vida que você queira , o trabalho que goste , a justiça o amor , a pessoa que mereça .
Talvez a realidade não se afine com a utopia
Que não brota do chão da sua esperança continuadamente adiada.
Mas é certo que a semente não brotada da sua espera sempre se adia para que você faça do chão duro e infértil um possível espaço para sua morada.
A realidade que lhe foi dada nunca se parecerá
com o ideal que sempre lhe faltará.
Você mesmo é a semente que fertilizará a construção da circunstância que lhe fará querer amar o que não merece ser amado , a ponto de lapidar a construção do odiável em amável ; a ponto de arrancar afeto do rosto repugnante da indiferença de quem tanto despreza o real como você – a ponto
de arrancar do chão frio da falta de sentido compartilhada um ramo de misericórdia : a concórdia da miséria humana compartilhada : o milagre humano da graça que nasce da desgraça comungada .
A vida que você não quer é a vida que lhe é dada . Mas a sua construção da realidade nunca lhe será roubada .

Obrigação

Você é obrigado a viver
Obrigado a morrer
Obrigado a comer
para cumprir sua função
Inescapavel de sobreviver.
Obrigado a comer a criação diária
do teu ideal de vida
que matará e reviverá outros obrigados
viventes em seu redor.
Obrigado a comer teu erro de cada dia
Obrigado a comer tua morte de cada dia
enquanto espera o despertar do sono
de em si mesmo sempre permanecer .

Obrigado a ver além de si
O que lhe faz mover :
alguém algo uma ideia
ou ideal de algo ou alguém
que constantemente trai
o seu querer.
Você é obrigado a querer
A construir o teu querer
A querer
mesmo o nada inexistente
que abraça teu cansaço
de sempre permanecer

Por falta de opções mais claras, amamos
a vida , a obrigação clara de sobreviver
ao tédio da existência.
Você é obrigado a amar:
Amar algo ou alguém torto
por teu desejo incerto
na obrigação inarredàvel
de construir quem é você
Amar mesmo a sua falta de amor
tua desilusão amorosa
que esplende em teu ressecar .
Amar a tentativa de amar certo
para além de nunca o merecer .
Amar a injustiça que lhe empurra
a contra ela se destroçar –
e ainda não morrer .

Você é obrigado a ver
contemplar mesmo a tua cegueira
aprender com os erros tortos
da tua certeza carcomida pelo tempo
e ainda não esmorecer
e ainda não morrer
Pois mesmo após a morte
cada detalhe de tua vida
erro acerto tentativa
em algo alguém
eternamente irá permanecer .
Eternamente irá viver.
Você é obrigado – sempre – a viver .

Sintoma

Padeço agora da falta urgente de sintomas.
Alguma doença há de me resgatar
desta saúde estéril que me joga
no mais vaidoso tédio de apenas
sobreviver .

Narciso nunca viveu. Espreitando lambendo
a própria imagem intocável , vivia estático, saudável,
à sombra de toda existência fora de si:
suicidava-se vivo continuamente
em glória à própria vida que jamais concebeu .

Todo outro , toda voz de um outro , toda tentativa falha de comunicação de comunhão
impossível com outra pessoa
é sintoma
de querer estar vivo.

A cada fracasso a cada ruído
em nossas vozes
misturadas que não se ouvem
ironizamos a falta de sentido.
Mas criamos um sentido que preenche a nossa falta.

Nunca saímos de nós mesmos
Mas tateamos no quarto escuro
de nosso isolamento
a sombra de algum toque furioso
que nos infecte de algum alegre desespero
e nos faça mergulhar para além
do suicídio vivo de nossa própria e covarde companhia .

Estamos sós . Sempre . Mas entrelaçados
em bilhões de outras solidões que nos sopram
e viralizam sua misericordiosa angústia .

Jamais Fechar olhos mãos corpo a todo sintoma
que nos move .
Um órgão só se sabe vivo quando dói.
Alguém só se aprende vivo quando aprende
um sentido pelo qual morrer .

Fingimento

Ha muito perdi o gosto pela vida .
Mas ainda abocanho um pedaço de desejo falseado do que quero.
A perda do gosto de viver te impõe duas ordens:
o suicidio que não anula tua história
que te engana no mergulho no nada que não existe
Ou a vida imposta , o afeto imposto , o amor imposto .
Obrigar-se a viver a amar a contragosto
é o apelo do santo que arranca um sabor
da própria carne e a lança na direção da doação
sem cálculo de uma ressurreição permanentente
a que se obriga .
Se não te comove o choro da criança recém nascida ou o gesto afável e interesseiro de um amigo ou a ação desastrada de quem por empatia destrói pontes e pessoas .
, saiba fingir
em nome de algum bem possível .
Uma doação fingida , um amor fingido
uma vida fingida em nome
de uma tentativa de um bem salva vidas .
Teu fingimento calculado de amor gera amor real
em seu redor .
Se em mais nada acreditas , saiba o que o nada inexistente é a mais falsa e estéril das crenças.
Finja . Interprete . Viva como um ator
que ama a própria atuação e vida lhe oferecera
um palco que melhora teu fingimento
e o transformará numa realidade maior
que uma tátil verdade .

A criança cega

Foi vista a liberdade
perseguida e acuada nos becos
violentada em nome
da saúde pública
e segurança nacional.
« é pela vida «
diziam os que a surravam.
Foi vista mas ninguém a percebia.
« é pra sua segurança »
diziam os Carrascos
que encenavam ao público mudo
o espetáculo.
Arrastada em praça pública,
nua, torturada , imobilizada,
a liberdade estrebuchava seu
quase cadáver à vista
da indiferença calculada
dos transeuntes
que por ela passavam.
« é pelo amor « , diziam
seus espectadores passivos.
Uma criança, cega ao espetáculo,
tocou a liberdade.
Os transeuntes desesperados correram assustados pela Ação da criança infectada.
« está doente « , gritavam.

” é por mim e por você « Disse a criança à liberdade -que lhe sorriu.

Reprodução

A vida se alimenta de mais vida.
O sorriso do teu filho embala
o teu sentido de vida
que embalará o sorriso do filho dele.
Não só.
A vida se alimenta de morte.
Cada sorriso negado
cada gesto esmagado
cada desejo enganado
reproduz o choro
de um eterno recém nascido
que berra pelo desconforto de nascer
após o sono no útero de um afeto sem cálculo.
Não há sono porém que descanse este nascer
permanente
que dói na eterna criança
que aprende a crescer perdendo –
brinquedos gostos ilusões pessoas amores dentes e sentidos .
A vida perde sempre o sentido.
 margem do que sempre se perde
criamos no gesto sem cálculo e desacreditado –
nunca lembrado
que salva uma vida
que gera uma lágrima
que banha um sorriso –
o útero que nos cria:
o deus que nos embala no sentido
nunca esquecido
do sorriso perdido do filho.

Nenhum adeus é eterno

Nenhum adeus é eterno.
Tudo acaba cotidianamente
Tudo morre cotidianamente
pra retornar de outra forma
Pra ressuscitar de outra forma:
Morre teu desejo pra retornar
em amor maduro sem cálculo
Morre teu amor pra retornar
em ilusão calculada de ressurreição.,
Se vai provisoriamente quem sai
pra comprar cigarros e nunca volta
pra morar no desespero tácito
da esperança de um adeus.
Nenhum adeus é eterno.
Tudo dura da dúvida
do que sentes
do que deixaste de sentir
do que aprendeste
com teu sentimento confuso
do que aprendeste do sentimento maduro
da dor de uma perda – sempre provisória
tatuada na carne de tua memória
que se transforma em sentido.
Tu te acabas a cada dia
Te despedes a cada dia
a que e a quem querias
te despedes a cada dia
a quem tu eras
permanecendo sempre
à espreita
de um reencontro consigo.
Há sempre um outro à sua espera
dentro e fora de Você mesmo.
Tua eternidade sem adeus
dura pelo tempo
em que te acostumas
a conviver com a perda inexistente
com a morte inexistente
na tua eterna renovação
na tua cotidiana ressureição.

Nós

A solidão berra em silêncio um nome
já esquecido ou ainda nem conhecido
a fim de povoar a multidão de desencontros
que se apresentam em cada aglomeração
de sombras . sombras de expectativas
sombras de cadáveres vivos que se arrastam
na memória de um amanhã adiado
sombras vivas de carne e osso
que tentamos tocar
e que desaparecem ao esboço
da tentativa de alguma luz.
Da festa de silêncios povoada
em meu quarto
Da festa de silêncios povoada
na balada genocida
de diálogos desencontrados
escuto a tua voz também solitária
que pela esperança de uma tentativa
de toque , vomite alguma luz.
Sós , entrelaçamos nossas solidões
sem sequer nos vermos
sem sequer nos conhecermos
Sós , somos muitos , somos todos
somos a esperança da fusão
de nossos corpos apartados.
Nós entrelaçados
apartados
de nós mesmos.