Sísifo

Carrego diariamente
esta pedra ao alto da montanha
que rola sempre abaixo
no momento da chegada .
Maldigo e perfaço
o caminho
por falta de encruzilhadas
que orientem outro destino.
Ama-se a vida por falta
de opções mais claras .
Aprendi a amar a pedra
pela maldição que me obriga
a caminhar .
Aninho a pedra
como ao filho
que me ergue da queda
que seria uma eterna chegada
ao topo da montanha
que mataria a caminhada .

Só sinto saudade do que nunca aconteceu

Só sinto saudade
do que nunca aconteceu .
As cicatrizes
da vontade contrariada
E do tempo perdido
em vontades esgotadas pelo erro
Ou o gesto de conciliação
Ou de necessária violência
abandonados
deixam marcas indeléveis
no corpo do vazio
do jamais acontecido .
Só sinto falta
do passado desacontecido
por falta de coragem
ou ausência
de chance .
Só a falta da chance
por falta de vontade
de construir chance.
Só sinto falta
da vontade exata
e madura
que hoje inaugura a razão
que me faltava antes .
Ou nem tanto :
sinto também saudade
da vontade irresponsável
da juventude cega
que inaugurava
a força da vontade
que hoje falta .
Sempre
nunca sinto saudade
da palavra exata
que define o que me falta .

O que importa

O que importa
é menos o pão ganho
com o suor do rosto
que a vontade do gosto
que prova sua conquista.
O que importa
são os olhos da criança
que justificam o gosto do pão
que os olhos do pai
saboreiam na boca do filho .
O que importa
é o sabor amargo
do pão que enche a barriga
da ausência dos que
só provam o suor da tentativa.
O que importa
é a boca aberta
que prova a fome
do outro
e se sacia
no sabor
de uma ausência compartilhada .

Psiu

Te contar um segredo:
a vida, esta daqui,
não vale tanto assim pelo que oferece.
Nenhum prazer ou dor
justifica a criação de um sentido.
A vida se justifica pela tentativa
desesperada
por uma espera
que jamais cessa;
a vida se justifica
pelo que ela não mostra,
por algo mais
que a ultrapassa
e que tocamos pela tentativa
de algum erro
mais acertado:
um amor heroicamente ignorado massacrado,
criado na ignorância orquestrada do desejo ;
a tentativa de ajuda por
uma ideologia incompleta;
uma mentira alentadora
a um desenganado;
uma esmola
a quem nenhuma posse
resolve a sua fome ;
uma cachaça
a quem tem fome
de além do que come.

Não se engane jamais
por quem diz
que nada
pode ser feito.
Tudo é feito
e tudo melhora
embora nada resolva
esta fome eterna
que nos devora.

Te contar um segredo:
a vida nada tem
de secreto
naquilo que ela
não ensina;
a vida berra o que não diz
enquanto não escutamos
e agimos contra
o silêncio da resposta.

Repetição

Chega um tempo
em que tudo se repete:
os gestos nos trabalhos do dia ,
o trabalho na construção dos afetos ,
das amizades , dos amores ,
o trabalho
da construção e lapidação
das paixões e ideais .
Se repete um rosto renovado
de um mesmo sentimento construído
em um outro rosto ,
se repete o abraço que enlaça a velha vontade
de um outro corpo :
talvez o mesmo corpo reinaugurado , talvez
um outro à mesma vontade enlaçado , talvez nenhum corpo , nenhum abraço
à mesma vontade despedaçado .
Repete – se o rompimento ,
o desgosto ,
que por cotidianamente repetido
torna – se
sem nenhum amargo gosto .
Repete-se o gosto
de um pretenso
gosto de algo já provado .
Repete – se
a vontade de se matar
que por tão revivida
torna a morte
tão repetitiva
como a vida .
Não :
a morte não nos cura
Da vida que é repetição .
Repete – se o amor reinventado
na face do filho
que cresce
e torna – se
um mesmo outro
à lembrança sempre atado
a todo o tempo sempre amado
ao amor sempre reinventado .
Repete-se a memória
do filho
que nunca tive
à esperança sempre
amarrado .

Tarde , percebemos
que desde muito cedo fomos
e somos felizes
na espera pela felicidade .
Repetimos a espera
tentando não saber
que a esperança
não seja uma quimera.

Hiato

Fui feliz
pelo tempo da mentira
em que acreditei
que você me amava
pelo tempo que cri no ideal
que eu mesmo me contava .

Por ironia
preferi a mentira
ao tempo da verdade que o ideal massacrava
que o tempo de amar dissipava.
Por ironia idealizei
a mentira distante
que aquele falso amor
tanto me felicitava .

Hoje cato ao vento
um pedaço de engano
à verdade amarrado :
sou feliz
no tempo distante
da ironia que se esgota
de um amor transplantado
-em meu árido deserto-
que um dia brota .

Esboço

Tocava a tentativa do toque
em quem por ausente de sua criação
sempre estivera próxima demais
para ser vista.
Desenhava então as nuanças
de sua ausência
para que pudesse percorrer
a distância do abandono
que jamais haveria
por quem por presente
em sua criação
sempre estará longe demais
para se ausentar .

Anatomia de uma emoção

Sorrio um sorriso estrangulado
para tentar enforcar
qualquer angústia
que sobreviva
à feliz realização
da interpretação
de um fracasso planejado .
Choro o sal que infertiliza
o prazer de uma alegria estéril.
Nada mais me comove a ponto
de matar a ressurreição
da permanente falta de sentido
que me presenteio .
Nem mesmo nenhuma indiferença
roça o pelo dos meus afetos
que se arrepiam de susto calculado
pelo golpe dilacerante
que rasga a carne
do meu vazio fugidio .

Teoria da conspiração

Quem cria inimigos invisíveis
cria conflitos desnecessários .
Quem cria conflitos desnecessários vê crimes invisíveis –
e abre espaço
para crimininosos reais .
Abre espaço
para a criação de crimes reais.
Quem enxerga
o esboço de algum afeto real
cria a sutil visão
que salva
a realidade
da criação do seu colapso .

Nenhum grande problema aparente

Nenhum grande problema aparente .
Todos os familiares na sala ,
menos alguns ausentes
por pequenos ódios naturais
ou alguma ausência em forma
de presença indiferente assaz sorridente .
Os sabores da Leitoa assada de natal
e gestos cotidianos
e algumas canções
sublimando os dissabores
que contornam a aparência
sempre insistente
de nenhum grande problema aparente .
Os mortos incidentes
sempre no afeto permanentes
coroam a continuidade
da vida que se vive e se ama –
sem nenhum grande problema aparente .
Os mortos iminentes –
um parente com um câncer
que à distância segura
come as sobras
de alguma tristeza não muito evidente –
nada que perturbe
a falta de nenhum
grande problema aparente .
De um , a falência grandiloquente
de outro uma letargia malemolente
gritam sua riqueza de aprendizagem
ao primo que venceu na vida
pelos cumprimentos efusivos
da família sorridente .
A inveja calculada temperada
com a generosidade complacente
à estupidez do erro fatal
do perdoado e distante parente-
tão próximo e presente .
O gesto de carinho que toca –
para além do que não compreende –
a melancolia indecifrável
e meio indecente
daquele sobrinho diferente .
( falta a você um grande problema , diz o tio ao sobrinho diferente )
Todos os gestos de doação
para além das bocas que mastigam a leitoa
e a saborosa alegria
que não mente
coroam a família
que come toda a vida
sem nenhum grande problema aparente .
Um cão transbordando afeto
come as sobras da leitoa
de uma ou outra
falha de comunicação
ou ausência de sentido
ou de gente
que caem no chão
de pessoas que se amam
sem nenhum grande problema aparente .