Anjo baixo

Há um anjo que aninho
e que me tenta
com a ternura de um diabo:
um anjo que me segreda traumas invisíveis
que temperam a frescura do rancor
a um inimigo a quem ignoro e abraço
com a complacência a um amor que odeio.
Há um anjo ruim em mim
que esmago sempre
com delicadeza
a fim de não matá-lo completamente
porque também ele me sustenta
com seus olhos belos como chifres
que espetam minha fome de verdade
com o sussurro do engano em que me rio
do ódio a tudo que não vejo
e me acalenta.
Há no riso do meu cego ódio
este amor que me inventa.
Neste anjo, uma indignação
surda a seu propósito
cria a ação de sua demolição
e recorrente ressurreição.
Este anjo me sobrevoa por baixo
a fim de que eu me eleve
acima da bondade trevosa
em que desabo.

Moldes de eternidade

Há vários modos de fabricar eternidade.
Uma múmia eterniza a hora de sua morte
legando aos vivos o registro embalsamado de seu corpo.
Um Botox ou silicone eternizam o desejo de beleza
registrando a morte da perecibilidade da carne.
Uma foto retém o voo de um pássaro,
engaiolando seu movimento no registro
de imagem idealizada.
Uma memória eterniza o voo do pássaro
recriando seu voo para além
do registro engaiolado do ato.
Uma ruína se eterniza pela arquitetura
que jamais desmorona
no registro da história que a ergue.
O sorriso de quem se ama se eterniza
como arquitetura que jamais se desmorona
no registro da história que o ergue.
Um fogo se alimenta pela brasa que o alimenta
na fogueira que alimenta sua chama
que revive no calor da cinza da madeira que consumiu.
Um amor ou ódio ou intenção afetiva ou intenção ideal
se recriam no tempo
como arquitetura reconstruída
de uma ação permanente
que erguem um palácio que jamais desmorona
na ação afetiva que o reerguem
eternamente
pela chama alimentada
da memória do agora,
que voa, com o esforço exaustivo
de suas asas
para além do registro engaiolado
da morte do momento
jamais mumificado.

Amo

Amo todas as aparências
com pavor amoroso
às pretensas evidências.
Amo, desconfiado do meu amor
à substância
e odiando a desconfiança
que me impede de tocar o fundo
do que no fundo não quero achar.
Amo as aparências
porque todas as substâncias
revelam sua falta de fundo
ao toque do olhar
que revela
o fundo do meu engano.
Amo meu engano
porque ele me impede
do amor ao dessentimento da certeza
que me impele
a uma devoção vertical
que me impede
de me derramar no horizonte
onde me perco de tanto amor enviesado.
Amo, desconfiado,
a paisagem árida da pobreza
que não se dá ao amor.
Amo, mesmo entediado
a beleza óbvia
que se desconfia
enquanto utopia do avesso.
Amo sobretudo o falso conceito de um nada
que se esgota em sua definição.
Amo a invenção precária
que contorna
toda criação turva
que ilumina
a sombra esquiva de amar.

Agora e sempre

Uma folha que cai
se ergue
no momento da eternidade
de uma queda
que jamais desacontece:
um momento
jamais passa na história
que o aflora.
Um bicho se sabe imortal
devorando
cada seu momento
de eternidade
sem ciência da morte
que ignora.
(O homem
que cuida da morte
– a vida ignora.)
Um amor que cai
se ergue
na brevidade
da ação
que colhe sua vida
num eterno agora.

Entendimento

Uma criança me sorri
ao concordar tacitamente
por razões razões avessas
a tudo que lhe disse.
Sorrio de volta
por compreender
menos sua incompreensão
mas o afeto de sua cega tentativa
que nos perdoa
toda falha de comunicação.
Sorrio de novo:
eu sou a criança que descobriu
na oferta esquiva da outra
a real comunicação
para além de sua intenção.

Felicidade

Há algo de torpe no que se diz felicidade :
algo que arreganha os dentes para a própria cegueira
Há algo de justo e cego na mesquinharia
que inveja o que ninguém jamais deveria possuir :
a felicidade que não fosse um sutil sorriso fechado
que cobrisse os dentes que mordem a violência
de sua indiferença
há algo de irreal no que se quer felicidade :
algo alegre que zomba da plenitude provisória do êxtase
Há tudo de pleno no precário que lhe prende
algo de pleno em ser realizadamente infeliz
pelas mais belas razões
que libertam novos dentes
que mastigam contentes
a carne cozida do contentamento

Justo

Injusto é tudo que não se ajusta
à justiça em que tudo enquadramos.
Não é justo o aceno negado
da beleza que se esconde
diante da procura que a inventa
Não é justa a feiura distribuída
que encanta as visões encantadas
à aparência de beleza
que inebria os cegos
que tateiam sua fome.
Não são justas as porcões de fome
que se distribuem no pão farto
engolido pela gula
que vomita seu apetite indiferente.
Não é justo o desejo
que jamais se ajusta à intenção
da oferta que o engana.
Não é justa a palavra inadequada
à expressão de sua intenção
que batiza sua sede de sentido.
A justiça se desintegra
na integridade que a sonha.
Mas o real não sonhado
não vale
um indolente acordar desesperado.
Justo
é o corpo
que não se molda
ao tamanho de sua desmedida
no universo que não vê
a consciência que o abriga.

Sobre tudo

Não só o que foi feito não se desfaz
como o não feito não se refaz:
a palavra perdida, a ação omitida
jamais se perdem na ação omissa
que finca no tempo sua tatuagem
do nada
que desenha na carne
sua cicatriz do esquecimento
que se lembra de si a todo instante.
Nada nunca é perdido
na corpo coletivo
da memória que paira acima
do escondido:
teu gesto de recusa é aceito
para sempre pelo testemunho
das pedras, da falsa indiferença
pela presença de um silêncio
que sussurra um berro incontinente
em alguma consciência
que ignora teu olvido.
Tua justiça calada
é ouvida
pela voz que ecoa
o apelo de sua consciência
o apelo de tua transcendência
para algo além da falsa ausência
que a acompanha
que te acompanha.
Teu amor ignorado
ou tua ingratidão
ao amor ofertado
são para sempre lembrados
pela história de uma íntima
solidão coletiva
que povoa cada tua ação
cada tua intenção.
O que foi jamais retorna.
Mas o que é jamais se esgota:
um erro se faz mais acertado
pela lembrança futura
de um acerto ainda
nunca de todo consumado.
A imperfeição nos sublima.
Nada, nenhum ato, omissão, pensamento
nem ninguém
jamais estão sós.